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A COLUNA DO PROVEDOR DO LEITOR
E, no Entanto, a Língua Move-se...

Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 14 de Maio de 2000

Deve ser confortável ter muitas certezas. Fica tudo mais claro, tudo mais simples, deste lado o certo e daquele o errado, faz-se assim e não se faz assado, pronto... E será que, quanto mais vamos andando nos saberes, mais próximos vamos ficando das certezas? Ou, pelo contrário, mais vamos percebendo como as coisas são complicadas, como nem tudo é o que parece, como a realidade se pinta em milhares de tons de cinzento entre os extremos do preto e do branco, como são raras as soluções únicas e inquestionáveis? Ou seja: ficando com mais dúvidas?...

Ter dúvidas não é ficar perdido, nem ser incapaz de decisão. Pode dar um pouco mais de trabalho do que ter certezas (implica reflectir sobre diferentes hipóteses, sopesar alternativas, ouvir pontos de vista de terceiros e considerá-los, arriscar opções) mas, simultaneamente, enriquece-nos e dá-nos maior consciência das nossas próprias falibilidades. O que, falando por exemplo em assuntos de jornalismo, não nos fica nada mal. E em assuntos relativos á língua portuguesa - que são os que aqui nos trazem hoje -, também não.

Afirmações irredutíveis sobre o certo e o errado, quando o que está em causa é esse autêntico "organismo vivo" em constante mutação e adaptação a realidades sempre novas, nem sempre serão prudentes. A língua muda, aceita hoje o que rejeitava ontem, evolui, ajusta-se às pessoas e ao mundo. Que se prefira dizer desta forma ou daquela, tudo bem; que se argumente com lógica a favor de uma grafia e contra outra, tudo bem também; mas, sobretudo em matérias controversas como podem ser estas, não nos ficará mal (a todos) dar algum benefício da dúvida a terceiros antes de, pura e simplesmente, desqualificar as suas escolhas - ou ignorar as suas humaníssimas dúvidas.

Dizer que é "uma burrice" ou uma "estupidez confrangedora" chamar "norte-americanos" aos cidadãos dos Estados Unidos da América (EUA) - como frequentemente tem feito, junto do provedor, o leitor Carlos Coimbra, morador em Toronto - ou apelidar de "incultos" e "jeitosos da escrita" os jornalistas do PÚBLICO que utilizam aquele termo - como prefere fazer o leitor Artur Pereira -, pode ser, independentemente das respeitabilíssimas opiniões pessoais e do modo cru de as expressar, algo precipitado. E se, por mera hipótese, não fosse exactamente assim? E se outras opiniões, igualmente respeitabilíssimas, contrapusessem coisa diversa?

Se o assunto fosse simples, o provedor responderia deste jeito também simples: chamar "norte-americanos" aos naturais dos EUA pode não ser a formulação mais rigorosa mas não é um erro. Com efeito, os instrumentos que normalmente aceitamos como referência para resolver as dúvidas da língua, e que são os dicionários, também admitem (a par de "americano" e de "estado-unidense") o termo "norte-americano" para designar os cidadãos dos EUA. Veja-se, por exemplo, a última edição do Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, que fornece dois significados para o termo: a) "relativo à América do Norte" (adjectivo); b) "natural ou habitante da América do Norte ou, especificamente, dos Estados Unidos da América" (substantivo). Não se trata de endeusar os dicionários, que podem ter falhas, mas também não façamos de conta que eles não existem, ou só existem quando concordam connosco

Se o assunto fosse linear, ficávamos então por aqui: os leitores dizendo "não" - ou seja, explicando que "norte-americano", em bom rigor, tanto pode designar cidadãos dos EUA como do Canadá e do México, pois todos pertencem à América do Norte -, nós dizendo "sim" - ou seja, explicando que o uso comum do termo, enquanto aplicado aos habitantes dos Estados Unidos, o integrou na língua a ponto de os próprios dicionários o terem já acolhido -, cada qual com a sua razão, cada qual na sua certeza, e fim de conversa. E, já agora, chamando burros e incultos uns aos outros...

Vamos por outro caminho. Pensemos um pouco, tentemos perceber os diversos pontos de vista, confrontemos as nossas dúvidas - e procuremos, à falta de regras categóricas, uma zona de entendimento. Ouçamos, por exemplo, o que tem a dizer a jornalista Clara Barata (autora da expressão "cientistas norte-americanos e canadianos produziram vacas clonadas", que caiu tão mal ao leitor Artur Pereira): "A distinção que fiz entre 'norte-americanos' e 'canadianos' baseia-se na expressão em uso corrente no PÚBLICO. Se concordo ou não que é corre cto chamar norte-americanos apenas aos cidadãos dos Estados Unidos, é uma coisa de difícil resposta. (...) Se chamamos apenas 'americanos' aos cidadãos dos EUA - com base num raciocínio que estipula que nos referimos àquele país como a 'América' -, também não me parece correcto. Brasileiros, uruguaios, argentinos e todos os outros também são americanos. (...) Há adeptos de ambas as denominações, tanto fora como dentro do jornal, e ambos têm parte de razão e outra de exagero."

Ao contrário da generalidade dos países do continente americano, os EUA não têm propriamente um nome de país: são, como a própria sigla indica, uma união de Estados (eles, sim, com designações próprias - Texas, Califórnia, Virgínia, Iowa...) que, entretanto, se assumiu como entidade política própria, autónoma. Um país. E um país que, por facilidade de expressão, desde há décadas é generalizadamente conhecido, ao nível da linguagem comum, por "América". Pode dizer-se que "América" passou a usar-se como abreviatura do nome (Estados Unidos da América). Mas, em bom rigor, o que sucedeu foi que se tomou a parte pelo todo, ao dar ao país a designação que pertence a todo um continente - a ponto de hoje, nas mais variadas latitudes, ninguém ter dúvidas de que, quando se fala da América sem mais, é dos EUA que se fala; quando se vai "para a América", é para os EUA que se vai; quando se alude aos "americanos", é aos cidadãos dos EUA que se alude. Mesmo que muitos outros cidadãos de muitos outros países se pudessem, com igual legitimidade, digamos, etimológica, reconhecer no termo. Isso sucede até por exclusão de partes: todos os outros cidadãos do continente americano (Norte, Centro ou Sul) têm um nome de país onde ir buscar a sua nacionalidade e, portanto, "não precisam" de se chamar americanos...

Quer isto dizer que foram basicamente a prática e o uso quem atribuiu à designação genérica "americanos" o significado específico que ele hoje transporta. Ora, idêntico processo foi seguido, em alguns meios (portugueses e não só), para difundir o termo "norte-americano". E sejamos francos: mesmo sabendo que ele pode, em rigor terminológico, designar também canadianos ou mexicanos, teremos de concordar que não é isso que sucede. Quando falamos em "norte-americanos", sabemos que é a cidadãos dos EUA que estamos a referir-nos, pois o uso corrente, ao longo de anos, assim foi determinando. E não inclui os canadianos ou os mexicanos porque, para falar desses povos, usamos as designações específicas que lhes competem: "canadianos", "mexicanos". Embora eles também sejam "norte-americanos" (porque do terço Norte do continente). E, já agora, também "americanos" (porque daquele continente).

Feita esta divagação - menos para tirar conclusões definitivas e mais para tentar mostrar como há argumentos com alguma razoabilidade das várias partes em confronto -, perguntar-se-á: em que ficamos?

Mesmo que a designação "norte-americano" não seja errada, ela é porventura desnecessária: artificial por artificial, discutível por discutível, então talvez seja preferível o termo "americano", quer porque acabou por ser o mais generalizadamente adoptado nas diversas línguas, quer porque decorre da designação comum com que todos nos habituámos a identificar os EUA - ou seja, "América". Por muito que tenha havido apropriação indevida do nome do continente, o facto é que ele hoje nomeia, sem lugar a confusões, aquela união de estados que se transformou num dos mais poderosos países do planeta. E, claro, sempre pode ser visto como a tal abreviatura.

No que toca ao PÚBLICO, a questão ganharia em ser esclarecida. Há quem escreva "americano", há quem escreva "norte-americano", e isso suscita confusões. Não seria mau optar por uma ou outra solução - e acrescentá-la às regras do Livro de Estilo, omisso neste particular.

· GREVE GERAL -O leitor Juventino Afonso estranhou ter lido, na edição do passado dia 2/5, a propósito das comemorações do 1º de Maio, que as centrais sindicais portuguesas tinham apelado "à greve geral". Isso se dizia no início do texto e na própria chamada de primeira página. "Eu estive numa das concentrações e não ouvi nada disso", conta o leitor, apontando o que parece ser uma "falta de rigor". E parece mesmo, como concorda o jornalista Pedro Camacho, responsável por parte da escrita e pela edição do trabalho. As menções à "greve geral" reportavam-se, de facto, à greve nacional da Função Pública, apontada para o dia 9. E era, na verdade, uma greve da generalidade dos funcionários públicos, podendo paralisar a actividade do país em múltiplos sectores, mas isso não deve confundir-se com "greve geral" - uma expressão com um significado e um alcance muito próprios. "Falhou a clareza", como admite Pedro Camacho. E tem razão o leitor: como diz, não pode "confundir-se a greve de um sector, embora importantíssimo, com uma greve geral".

· FOTOGRAFIA - Volta o assunto sempre sensível da utilização de fotografias de arquivo para acompanhar certos trabalhos jornalísticos. O leitor Francisco Vaz da Silva viu "com surpresa e desagrado" que, no passado dia 30/4, foi utilizada uma foto do bairro de Santiago, em Aveiro, na reportagem sobre a terrível história do sequestro e tortura de duas crianças daquela cidade. Em sua opinião, o tal bairro não teria "nenhuma ligação" com o crime relatado, pois "nem foi local do crime, nem dele são originários os criminosos". Assim, não gostou de ver em realce uma zona residencial que tem sido "tão estigmatizada" e "vista como pólo de delinquência", fazendo recair sobre os seus habitantes, "sobretudo os jovens", frequentes suspeitas. Esclareça-se, desde já, que a legenda não associava o bairro de Santiago ao local do crime: referia apenas tratar-se de uma zona de Aveiro, cidade "preocupada com a persistente violência juvenil". Por outro lado, o bairro - embora utilizado aqui como documento gráfico mais genérico - tinha efectivamente uma ligação com a dramática ocorrência: não são dali os criminosos, mas residem ali as vítimas. Aliás, isso mesmo se dizia no texto. Por estes motivos, tanto à jornalista que subscreveu o trabalho como ao editor que escolheu a fotografia não pareceu desadequada a imagem. E ao provedor também não, embora se entenda a preocupação do leitor face a leituras mais precipitadas. Claro que seria sempre preferível uma foto "do dia", feita no local por um repórter do PÚBLICO. A utilização de imagens de arquivo é uma opção de recurso, frequentemente um mal menor - mas de que os jornais, como já aqui se disse, dificilmente podem prescindir.

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