Uma Profissão de Riscos Vários
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 7 de Maio de
2000 O jornalismo é uma profissão de risco. E as notícias divulgadas
esta semana, tendo por motivo a celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (3 de
Maio), não podiam dar à expressão mais dramático sentido: ao longo de 1999, 71
jornalistas foram mortos, nas mais diversas latitudes, em pleno trabalho ou por causa da
sua actividade profissional. Para além disso, há actualmente 80 jornalistas presos, num
total de 18 países. E, como lembra a Associação Mundial de Jornais, nada menos do que
103 países têm em vigor, nos tempos que correm, algum tipo de limitações à liberdade
de imprensa.
O assunto, concordaremos, não diz respeito apenas à classe dos jornalistas. Como se
referia na mensagem conjunta do secretário-geral da ONU, da alta comissária para os
Direitos Humanos e do director-geral da UNESCO, a propósito deste Dia Mundial, "cada
vez que um jornalista é morto ou atacado, a sociedade no seu todo sofre um profundo
ferimento", pois "sempre que um / uma jornalista é alvo de violência,
intimidação ou detenção arbitrária por causa do seu emprenhamento na busca da
verdade, todos os cidadãos são desapossados do direito a pensar e a agir de acordo com a
sua consciência". Nesse sentido, "a liberdade de imprensa é uma pedra angular
dos direitos humanos e um garante das outras liberdades".
Os diversos textos alusivos a esta efeméride recordam que se encerra agora um século
durante o qual muito se trabalhou, e muito foi necessário trabalhar, em prol da sempre
tão ameaçada liberdade de imprensa. A história guardará, destes últimos cem anos,
demasiados períodos negros de guerras, de atrocidades, de ditaduras, de fascismos, de
regimes autoritários - e que, independentemente de pertenças político-ideológicas,
sempre tiveram em comum, na sua primeira linha de prioridades, cercear os direitos à
livre informação e à livre expressão. Nisso, de resto, alicerçando a sua condução
da coisa pública, expurgada (e entende-se bem porquê...) de vozes dissonantes, de
crítica, de denúncia, de livre circulação de ideias ou de propostas alternativas. Em
muitos desses períodos negros - que, lamentavelmente, em tanto sítio deste mundo ainda
são tudo menos passado -, ser jornalista foi um enorme risco. Muita gente pagou com a
vida ou com terríveis sofrimentos o facto de, nas próprias alturas e até hoje, todos
nós podermos saber o que se ia passando. E, ao receber informação, também fomos
podendo pensar, tomar posição, agir nos nossos próprios campos de actuação, e fazer a
nossa parte do caminho para um mundo mais civilizado, mais democrático, mais habitável,
mais livre. O tal caminho em tanto lugar inacabado.
Registe-se, a propósito, a coincidência feliz de, nesta mesma semana, terem sido
anunciados os prémios Gazeta de Jornalismo, atribuídos aos quatro repórteres
portugueses que se mantiveram em Timor-Leste durante o período mais duro e mais perigoso
da resistência à agressão indonésia. Durante muitos dias, nos meios de comunicação
para que trabalhavam mas também em todos os outros a que generosamente deram a sua
colaboração, fosse dia ou fosse noite, pudemos testemunhar o modo como se entregaram ao
trabalho, apesar dos constantes riscos, num autêntico serviço público que cumpriu um
dos objectivos mais nobres desta missão de informar: trabalhar pela preservação da
dignidade da pessoa humana e pelo respeito dos seus mais elementares direitos.
Como sublinhava um texto divulgado pela Associação Mundial de Jornais, a propósito
do 3 de Maio, "a imprensa está bem longe de ser um simples cronista, um simples
observador passivo, um simples reflexo dos acontecimentos; ela é, ou esforça-se por ser,
acima de tudo, a voz do povo no seu diálogo constante com os centros de poder na
sociedade". E se, no caso de Timor-Leste, podemos apontar aqui e ali algum exagero
emocional no acompanhamento noticioso da situação, esses pecadilhos - compreensíveis
num contexto tão envolvente e tão dramático - não nos fazem esquecer o papel decisivo
que teve a comunicação social na resolução do conflito.
Não se pretende, com isto, fazer uma glorificação angélica do jornalista como uma
espécie de cavaleiro andante, herói romântico que lança o peito contra as balas, onde
quer que a liberdade esteja ameaçada, e se sacrifica sem pestanejar com o propósito de
salvar o mundo. Os maiores heróis destes combates são, porventura, os menos conhecidos.
O risco desta profissão, tal como o empenhamento para a dignificar e manter fiel ao seu
indeclinável compromisso com a sociedade, só em pequena parte se joga nos campos de
batalha, apesar da inegável força mítica que continua a acompanhar o
"correspondente de guerra". Em muitos países onde não há conflitos armados,
mas onde a liberdade de imprensa sofre limitações mais ou menos severas, é um risco
diário trabalhar como jornalista e não abdicar efectivamente de o ser: exprimir-se
livremente e permitir que os cidadãos o façam, denunciar o que deve ser denunciado,
recusar as manipulações ou as seduções dos diversos poderes, não permitir que
critérios exteriores à informação condicionem essa própria informação. E, mesmo
sendo um risco que não se paga necessariamente com a vida, é um risco que traz tantas
vezes privações, desemprego, marginalização, solidão, sofrimento. E em nome de quê?
Não do sucesso ou da glória, mas desse propósito simples de servir o interesse
público, de pugnar pela liberdade, de contribuir para o desenvolvimento, para o
conhecimento, para a autonomia dos cidadãos.
Enfim, será bom pensarmos que alguma desta história não se passa apenas "lá
longe", em países que nos habituámos a citar. Por outras vias, e de outros modos,
também cá mais perto, mesmo ao pé de nós, aqui, há muito quem (se) arrisque no
exercício diário de uma profissão tão desejada como temida, tão respeitada como
vilipendiada. Num tempo em que - por muitos e compreensíveis motivos, infelizmente - os
jornalistas e o jornalismo são objecto frequente de crítica, de dúvida, de descrédito,
até de chacota pelo papel a que aqui e ali se prestam, é justo fazer o contraponto com o
outro lado da medalha: com tanto profissional que, no labor rotineiro do dia-a-dia, não
cede à facilidade do espectáculo, não se emaranha nas teias sedutoras do poder, não
desiste de tentar servir os leitores e só os leitores, não troca a busca da verdade pelo
efeito sensacionalista, não se apressa nem se mete por atalhos só para chegar à frente,
custe o que custar. E com tudo o que isso implica de risco, risco de ficar do lado
"errado" da corrente fortíssima que hoje procura normalizar procedimentos e
apresentações, rendendo preito a um todo-poderoso sistema que, em nome das leis do
mercado e das supostas vontades do povo, nos quer fazer a todos mais iguais, mais
previsíveis, mais "ligeiros". Mas mais pobres - e, quero crer, mais afastados
do que os cidadãos-leitores nos exigem.
Lembrar estas novas ameaças e estas potenciais novas servidões é também falar da
liberdade de imprensa, uma liberdade real e não apenas formal. Com a vantagem de ser um
combate diário que se trava aqui, no meio de nós, e não lá longe. Que, portanto, nos
interpela directamente.
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