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A Força e o Risco das Imagens Terríveis
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 23 de Abril de 2000

A imagem era terrível:corpos de animais amontoavam-se em desordem, numa enorme mancha vermelha de sangue que contrastava com a neve branca do chão. Ao fundo, sem olhar, passava uma mulher. "Parece envergonhada", dizia a legenda que acompanhava a fotografia, e pela qual ficávamos também a saber o que era aquilo: cadáveres de centenas de bebés-focas, esfolados pelos habitantes de uma vila do Norte da Rússia. Mais sabíamos que a venda destas peles é a única fonte de rendimento daquelas pessoas, embora a "campanha" - que dura apenas uma semana - não dê a cada uma mais do que uns 20 contos.

O problema é que esta imagem, divulgada pelo PÚBLICO na sua edição de 10 de Março passado, saiu com grande destaque a toda a largura da primeira página. E a primeira página do PÚBLICO, como se sabe, é habitualmente a cores. E uma mancha vermelha de sangue, assim, deve ter chocado alguma gente. É, pelo menos, o que pensam três jovens leitores - Marisa Silva, Rita Garcia e Tiago Farinha -, também estudantes de Ciências da Comunicação, e que apresentaram ao provedor algumas questões sobre este assunto.

"Embora se compreenda que a imagem possui um impacto visual que lhe confere um valor-notícia elevado, temos dúvidas relativamente à colocação da fotografia em destaque na primeira página, sobretudo quando, no interior do jornal, não existe qualquer outra referência ou desenvolvimento explicativo do assunto", dizem. Embora não queiram "pensar que a lógica 'o sangue vende' se tenha instalado (mesmo que pontualmente) no PÚBLICO", o certo é que consideram a imagem "geradora de sensacionalismo". E perguntam: "Pode considerar-se deontologicamente correcta esta forma de noticiar um acontecimento, nomeadamente este acontecimento violento? (...) Pode esta fotografia justificar a chamada à primeira página e a importância que lhe é conferida?".

Não são perguntas fáceis nem de resposta óbvia. Embora sejam perguntas frequentes, como já se viu até na vigência do anterior provedor do PÚBLICO, Jorge Wemans, a propósito de fotografias com cenas de guerra. Lembrava ele, então, como esses contextos violentos (Timor, Argélia...), na hora de escolher as imagens confrontavam os responsáveis do jornal com "decisões difíceis e controversas": "Que critérios usar? Onde situar a fronteira entre a representação necessária e o uso sensacionalista do horror?".

Acresce que, como Jorge Wemans também lembrava (e o actual provedor subscreve), o Livro de Estilo do PÚBLICO nada diz sobre esta matéria - como, de resto, pouco diz sobre o importante tema da fotografia. E, embora o assunto da representação da violência nos meios de comunicação provoque frequentemente discussões acaloradas entre leitores ou espectadores, o debate dos jornalistas nesta matéria, e em sede de deontologia, não tem sido muito intenso. Há, porventura, mais preocupação em discutir as inaceitáveis invasões do espaço privado das pessoas, por via dessa classe peculiar a que chamam "papparazzi" e que ganhou um especial protagonismo aquando da morte da princesa Diana - a ponto de se terem apertado fortemente, em Inglaterra, as restrições legais à publicação de certas imagens.

Mas voltemos ao caso. E tentemos perceber quais os motivos que levaram a Direcção do PÚBLICO a decidir-se pela publicação daquela fotografia (ou, como se diz em gíria profissional, daquela 'fotolegenda': uma foto acompanhada apenas de uma legenda, um pouco maior do que o habitual, e sem qualquer outro texto complementar). "A foto não foi publicada com o intuito de chocar ninguém, mas sim como alerta para uma situação que se repete em silêncio, neste caso tendo por alvo (e vítimas) as focas", explica o director-adjunto, Nuno Pacheco, para quem não faz muito sentido integrar a opção numa lógica de "o sangue vende". Como defende, "é duvidoso que alguém se sinta atraído por um jornal que publica com destaque um massacre de focas; a cena, em toda a sua impiedade e crueza, quando muito obrigará o leitor mais incomodado a refllectir sobre uma situação que existe para lá da sua vontade e do seu pacífico quotidiano". E faz o paralelo com as fotografias horríveis de guerra, cuja publicação pretende, em muitos casos, "despertar cada leitor para a verdadeira profundidade de alguns dramas sociais e políticos que por vezes ele contempla com a mesma placidez com que olha um anúncio".

Não há grandes dúvidas sobre a bondade do fim que se pretendeu alcançar; a questão está em saber se os meios utilizados para atingir esse fim foram proporcionados, adequados, e portanto se justificaram. Ou, dito por outras palavras, se à boa intenção - alertar a opinião pública para o horror da chacina de bebés-focas com o fito de vestir as suas peles - correspondeu uma boa concretização.

Foi, em certa medida, um tratamento de choque. Reforçado pelo facto de os jornais, agora, costumarem usar cor nas fotos de primeira página. Não há ainda muito tempo, com tudo a preto e branco, estes problemas mal se colocavam; a foto em análise só produz aquele efeito porque é a cores, porque tem muito sangue e... o sangue é vermelho. Se tudo saísse a cinzento, nunca a imagem seria ali utilizada, não tanto porque não chocava mas porque perderia, naquele contexto, a força e a legibilidade.

Se a maior parte dos leitores ficou impressionada com o horror, a ponto de já quase nem querer conhecer o assunto, então a mensagem não passou. É nisso que dá, em alguns meios, a banalização do sangue e do drama, a sua exibição gratuita e descontextada, apenas para suscitar emoção à flor da pele. Mas se, como acreditamos, a maioria dos que olharam para o PÚBLICO naquele dia tomou conhecimento - e consciência - de uma realidade monstruosa, talvez tenha merecido a pena. Claro que tudo isto podia ser dito de outra maneira, mais suave, mais explicada, mais com palavras; mas há casos, e este será porventura um deles, em que "uma imagem vale mais que mil palavras". A tal ponto que não se afigura necessário, para além da foto e da legenda, dizer muito mais no interior do jornal. Ficou tudo dito. E o silêncio também fala - às vezes, de que maneira!

Este acontecimento tem, de facto, um valor-notícia elevado. Mas a imagem que permite "vê-lo" é determinante para ajustar e enfatizar esse valor. Não parece, pois, que seja sensacionalismo apresentá-la do modo como se apresentou. Usado com bom senso e com parcimónia, este recurso gráfico pode fazer sentido em jornais como o PÚBLICO - cuja linha editorial, de resto, os leitores conhecem, e a cuja luz devem ler choques como este.

Há, naturalmente, outros modos de dizer o horror. O PÚBLICO apresentou um bom exemplo recentemente (11/4), também na primeira página, quando publicou a fotografia premiada com um Pulitzer a propósito de um massacre num liceu americano. Ali não havia sangue, nem cadáveres, mas apenas as faces de insuportável dor de duas colegas dos jovens mortos. Uma fotografia belíssima (sim, belíssima, apesar da dor) e que, indirectamente, nos conta toda a tragédia. Não era o caso das bebés-focas, cuja fotografia até nem era muito bonita. Mas talvez fosse, naquela circunstância, necessária. Talvez...

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