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Uma Questão de Confiança
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 2 de Abril de 2000

Como aqui há tempos costumava dizer-se, "a língua portuguesa é muito traiçoeira...". Há palavras que, só por si, nos confundem ou nos abrem variadíssimas hipóteses de leitura, dada a pluralidade dos seus sentidos. Mas há outras que, mesmo parecendo ter um significado óbvio e inequívoco, nos surgem volta e meia utilizadas em contextos - ou, sobretudo, com intenções - dúbios, para não dizer perversos. A palavra "confiança", por exemplo. É uma palavra clara, límpida, positiva. Aponta para uma das mais respeitáveis e recomendáveis qualidades de um ser humano, base fundamental de um adequado relacionamento com outros seres humanos. Ser "de confiança" é, em princípio, e face à transparência da palavra, um dos maiores elogios que pode fazer-se a alguém. Então porque é que, quando ouvimos dizer: "Este jornalista é de confiança!", ficamos levemente incomodados, suspeitando do efectivo alcance da lisonja?... Porque é que nos apetece logo pôr um pé atrás?...

O presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, manifestou, na semana passada, o seu desejo de que só tivessem acesso ao Parlamento jornalistas "de confiança". Ou, para ser mais explícito, e de acordo com as transcrições da imprensa, "jornalistas que mereçam a nossa [deles, deputados] confiança". Para quê? Para, assim, garantir que a cobertura da vida parlamentar seja feita com "objectividade e rigor". Mas não só: também para assegurar, da parte dos jornalistas, "compreensão pelas dificuldades do funcionamento de todos os parlamentos dos Estados de Direito Democrático", de acordo com um comunicado difundido entretanto por Almeida Santos. O corolário desta história foi, como todos lembrarão, a ameaça explícita do presidente da Assembleia da República (e aplaudida, desde logo, por deputados do PS) de não conceder a credenciação de acesso ao Parlamento a jornalistas pouco "confiáveis". "Não nos obriguem a tomar medidas...", avisou.

Deixando de lado o infeliz episódio da credenciação, que já foi suficientemente dissecado e mereceu mesmo um breve acto de contrição de Almeida Santos, valerá a pena atentar em dois aspectos mais genéricos: a questão da "confiança" e a questão da "compreensão" que os jornalistas devem demonstrar face ao funcionamento das instituições democráticas.

Se há coisa que um jornalista tem de ser, é, obviamente, "de confiança". Nem de outro modo se entenderia. Na esmagadora maioria dos casos, o seu trabalho não pode ser verfificado ou fiscalizado "in loco" pelos leitores. Se reporta um acontecimento, o jornalista conta o que viu e ouviu e todos nós, como base de partida imprescindível para a nossa relação com a informação que consumimos, confiamos no seu relato. Acreditamos que nos está a contar de facto o que se passou (sem prejuízo de sabermos que nos transmite sempre uma visão própria, mas ainda assim apresentada com um esforço de objectividade e de distanciação); acreditamos que nos está a fornecer os elementos mais relevantes, de entre os muitos que poderia escolher (e, mais uma vez, a selecção que se faz com uma inevitável subjectividade não se faz de modo arbitrário ou aleatório); acreditamos que recolheu as suas informações de modo correcto e no-las transmite sem outros propósitos que não sejam os de informar o público sobre matérias consideradas de interesse geral. Enfim, se - enquanto leitores - damos crédito a um jornalista, é porque confiamos na sua honestidade pessoal, na sua competência profissional e no seu respeito pelos princípios éticos e deontológicos do ofício de informar.

Dito isto, deve reconhecer-se que, quando em certos meios (políticos, económicos, desportivos) se diz que tal ou tal jornalista "é de confiança", não se está sempre a dizer exactamente o que parece. Está menos a dizer-se que ele é confiável, do ponto de vista pessoal e profissional, e mais a sugerir-se que ele "é da nossa confiança" - ou seja, "é dos nossos". Com isso significando, normalmente, que se pode falar á vontade, pois ele será uma espécie de "aliado" e não vai escrever, no jornal, nada que possa comprometer, nada que possa desagradar, nada que seja negativo. Nada que possa "prejudicar", uma vez que, sendo ele "de confiança", até "compreende".

O que nos leva à tal expectativa, enunciada por Almeida Santos, da "compreensão" pelas dificuldades de funcionamento das instituições democráticas

Deve um jornalista, no seu trabalho, preocupar-se em defender as instituições democráticas? E fazê-lo de que modo - ou seja, a que ponto deixar que essa preocupação interfira, seja em que sentido for, na sua actuação profissional? Por exemplo: deve esperar-se dele que, para não dar uma imagem negativa de certas instituições, deixe de divulgar certas informações a que teve acesso? Deve esperar-se que, em nome de uma peculiar "pedagogia da democracia", varra o lixo para debaixo do tapete e transmita um ar de casa limpa quando a casa, de facto, não está limpa? E, não o fazendo, estará de algum modo a contribuir para o "desprestígio" das instituições, para a distância dos cidadãos face à política, para a desvalorização da própria democracia representativa?

Parece evidente que um jornalista não pode deixar de defender a democracia, condição de base para o exercício normal da sua actividade - uma actividade cujos pressupostos essenciais, como são a liberdade de expressão e o direito á informação, são sempre cerceados em regimes não democráticos. Mas, para um jornalista, a melhor maneira de fazer a sua parte na defesa da democracia é, precisamente, ser um bom jornalista... Ou seja, ser "de confiança" para os leitores, contando-lhes tudo o que parece relevante de um ponto de vista do interesse público e não escondendo nada, por muito incómodo, só porque "desprestigia" alguns dos protagonistas da cena pública ou a imagem dos órgãos a que estão ligados.

Para defender a democracia e o prestígio das instituições democráticas, um jornalista só tem que respeitar as normas legais e, mais do que isso, seguir exemplarmente as regras éticas e deontológicas da sua profissão. O fundamento destas - que podemos sintetizar na trilogia da defesa da liberdade, do apego à verdade, e do respeito pela dignidade da pessoa humana - é também o fundamento de uma sã convivência em democracia, num Estado de Direito. Portanto, um jornalista não tem que ser "objectivo e rigoroso" porque, de outro modo, prejudica a imagem do Parlamento; tem que ser "objectivo e rigoroso" porque, de outro modo, não está a ser um bom jornalista... E, não o sendo, é neste âmbito que deve ser avaliado, criticado, contraditado; não no âmbito das decisões administrativas de concessão de credenciais ou coisas assim.

Por muito que custe a algumas figuras que prestam serviço em instituições públicas, a melhor maneira de "compreender" e defender a democracia, mas defendê-la genuinamente, não é esconder as deficiências, as falhas, os males; pelo contrário, é expô-los. Objectiva e rigorosamente, mas expô-los. Para que se saiba - e para que se melhore.

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