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Critérios para Uma Boa Escolha
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 26 de Março de 2000

Independentemente de concordarem ou discordarem, às vezes os leitores pura e simplesmente não compreendem certas coisas que vêem nos jornais. Não percebem porque é que se fez assim e não assado, não descortinam os critérios que subjazem a tal ou tal opção, não vislumbram com que intenções se usou esta fotografia ou se realçou aquela frase.

O facto aparece como tanto mais estranho quanto melhor se conhece o jornal, a partir de um convívio diário que - ao menos por habituação - nos vai "explicando" as linhas com que se tece o projecto. Familiarizando-nos com as suas formas de organizar e apresentar a informação, somos normalmente capazes de intuir uma linha de razoável coerência que esclarece certas escolhas. Os tais critérios, que fazem com que os jornais se distingam uns dos outros e não sejam "mantas de retalhos" mas, pelo contrário, revelem aquela homogeneidade e coerência necessárias à identificação de um público fiel.

Vem isto a propósito de duas questões recentemente colocadas ao provedor por dois leitores. Diversas embora, ambas se perguntam: qual é o critério?

O leitor Pedro Teixeira Neves, jornalista de profissão, dá conta do seu "espanto e desencanto" por ler de vez em quando no PÚBLICO, na rubrica "Diz-se" (onde diariamente se reproduzem frases proferidas ou escritas, na véspera, por gente conhecida), citações de "pessoas que nem de longe nem de perto" têm "a estatura moral para proferir qualquer tipo de comentário sobre o que quer que seja". Deixando de lado o exemplo concreto referido, e que pouco interessará para a reflexão global sobre o assunto, fica no ar a conclusão do leitor: eleger afirmações de indivíduos desqualificados é "pactuar com o descrédito moral que campeia na sociedade" e "manchar" o jornal.

Será assim? Será que, entre os princípios que orientam as escolhas para aquela secção, deve incluir-se o juízo sobre a "estatura moral" dos autores das frases?

O director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, explica que os critérios seguidos no "Diz-se" são os de "seguir os temas de actualidade, polémicos, com seriedade, com piada", para além do desejo de "abranger um leque vasto de fontes de informação, de 'O Diabo' ao 'Avante', da 'TV Guia' à 'Visão' ou à 'Focus', da TSF à 'Antena Um', da SIC à TVI...". Mais acrescenta que aquela coluna "não exclui ninguém à partida".

De facto, seria difícil fazê-lo. Desde logo porque, em rigor, nunca toda a gente estaria de acordo sobre a grandeza ou a baixeza moral de determinadas personalidades. Vai o jornalista ajuizar? Mais: vai o jornalista ajuizar "a priori", sem sequer dar o direito de palavra (nele incluindo o direito à asneira...) a esta ou àquela pessoa? Com que autoridade - moral, já agora? Mesmo admitindo que possa haver, aqui ou ali, consenso sobre o baixo nível de determinada figura pública, a citação de frases suas pode até ser significativa e útil para que o público a conheça melhor, daí retirando as suas ilações. Em qualquer caso, é essa a função do jornalista: não julgar mas fornecer elementos para que os leitores, querendo, julguem.

A selecção das frases do "DIz-se" é subjectiva, claro. Há centenas delas, todos os dias, à disposição. É preciso escolher, o que implica sempre algum juízo de valor sobre a relevância da personagem, sobre a pertinência do dito, sobre a graça. Mas não parece que isso permita excluir alguém só porque se duvida da sua "estatura moral". Se os jornalistas se arrogassem o direito de recusar a palavra a personalidades públicas cuja integridade lhes merece reservas, os jornais saíam certamente com páginas em branco... E diferentes conforme o jornalista, conforme o jornal.

A escolha de fotografias para associar a determinado texto é outro dos casos em que nem sempre são perceptíveis os critérios de uma publicação. Há uma certa imagem gráfica, uma linha estética, um estilo informativo, mas... há que arriscar. E o caso fica mais complicado quando se trata de escolher uma fotografia "de arquivo" - ou seja, uma imagem que não foi colhida no dia nem directamente para aquele assunto -, com o objectivo de ilustrar dada temática.

Foi o que, há semanas, sucedeu quando o editor da secção de Sociedade, Fernando Correia de Oliveira, pretendeu contextar fotograficamente um trabalho sobre a menstruação. Tarefa difícil, já se vê. "Passei cerca de duas horas a ver o banco de imagens [do PÚBLICO], a tentar apanhar alguma coisa que, sugerindo, pudesse, de forma elegante, suportar o tema", recorda o editor. Acabou por seleccionar uma fotografia que considerou "de uma qualidade gráfica excepcional", que "vive de mulheres e manequins, mais ou menos acorrentados, uns deitados, outros de pé, presos nos seus corpos (...)". E conclui: "Achei que a leitura subliminar da foto podia muito bem ser a de um certo estado feminino, o da menstruação, comum à generalidade das mulheres, 'prendendo-as' à sua condição e às alterações físicas e psicológicas que a maioria sofre durante esse período. (...) Achei que tinha conseguido a escolha ideal".

Independentemente da bondade da escolha - os leitores dirão se a fotografia "falou por si" e serviu o efeito pretendido pelo editor -, criou-se um problema novo: aquela imagem, já antiga, retratava uma "performance" teatral do grupo portuense Balleteatro (como se identificava na legenda). Ora a responsável do grupo, Manuela Barros, fez chegar ao provedor a sua "perplexidade" por ver usada uma foto da "performance" a ilustrar um artigo sobre menstruação. "Qual a legitimidade para editar fotografias completamente fora de contexto?", interroga.

Toda a foto de arquivo - e todos os jornais as usam, todos os dias - é editada fora do contexto para que inicialmente foi feita. Por isso a sua escolha, para ser legítima e servir bem o propósito informativo que pretende, requer especiais cautelas: deve ser uma imagem genérica, sem marcas evidentes do contexto particular em que foi colhida, e cuidando que a sua nova "leitura" não traga conotações negativas. Além disso, é de boa norma identificar o quadro original da fotografia - ou, pelo menos, dizer que é de arquivo.

Estas preocupações foram, aqui, tidas em conta. E, para além do factor estético, Fernando Correia de Oliveira estabeleceu até uma relação entre o tema e o título da "performance" - "bondage", palavra que significa 'amarramento' e que devia, aliás, ter sido traduzida para toda a gente entender -, dela dando conta na legenda :"A menstruação é uma limitação, um 'bondage', ou 'dias maravilhosos'?".

O provedor concorda, no essencial, com o procedimento do editor. Mas se as pessoas directamente implicadas (as que aparecem na foto) não gostaram de se ver associadas a uma temática diversa da da peça teatral, tem de respeitar essa sua opinião. Embora não considere a associação ofensiva. Daí sugerir que, atentas as justificações aqui deixadas, se compreenda o critério da escolha, bem como a dificuldade prática de resolver, num jornal, estas situações. Por muitas imagens que haja em arquivo, nunca há a ideal...

Contactos do provedor do leitor:
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Telefones: 22-6151000; 21-7501075
Fax: 22-6151099; 21-7587138
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