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De Que Se Faz o Sensacionalismo?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 19 de Março de 2000

Em alturas como esta, percebe-se bem o potencial impacto de um órgão de comunicação de grande difusão e a enorme responsabilidade que é escrever num jornal com crédito na praça: poucos títulos do PÚBLICO terão levantado um tal coro de protestos, dúvidas e reparos como a manchete do último domingo (12/3/00), dedicada ao tema da amamentação - "Leite materno: o amoroso veneno". Muitos leitores apresentaram os motivos do seu desagrado em cartas ao director, de que pudemos há dias ler uma amostra, de par com as explicações da própria Direcção Editorial. Alguns entenderam também apresentar o caso ao provedor, decerto no propósito de que aqui se suscitasse uma reflexão sobre as razões (ou falta delas...) da opção do PÚBLICO neste episódio tão sensível.

Foram três, basicamente, as faltas apontadas ao jornal no modo como lidou com a matéria em apreço: alarmismo, ligeireza e sensacionalismo.

"Será que o PÚBLICO pretende lançar o pânico?", perguntava-se um leitor, comentando as "letras garrafais e a vermelho" com que, na primeira página, se deu a entender que o leite materno - essa "sopa química inesperadamente tóxica" - estaria a "envenenar" as nossas crianças. Afirmar, como se fazia no texto associado ao título, que tal leite "está dez a cem vezes mais contaminado que qualquer alimento neste momento à venda no supermercado", é de molde a assustar qualquer um(a). É verdade que esta era apenas uma frase retirada de um texto de opinião de uma cientista, mas isso não diminui, antes pelo contrário, a gravidade da afirmação. "Ao colocar a questão desta forma, está-se a contribuir para a formação de várias psicoses ao nível da população em geral e das mães em particular, ainda por cima quando a opinadora usa um título de ciência", comenta outro leitor.

Quando se fala em sensacionalismo, fala-se em questões de fundo e de forma: tratar a informação de modo incompleto ou parcial, e apresentar essa informação num formato excessivo ou enganador. De tudo isso terá havido um pouco neste caso, pese embora a opinião do director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, de que "não houve intenção sensacionalista"; não se duvida das intenções mas duvida-se de que elas tenham tido uma acertada concretização. O próprio título, embora com uma sonoridade apelativa no jogo de palavras contrastantes ("amoroso veneno"), talvez tenha tido um efeito oposto ao que pretendia, introduzindo uma carga fortemente negativa ("veneno", ou seja, "morte") no que habitualmente se considera, até no plano simbólico, expoente máximo da pureza: o leite materno (ou seja, "vida").

Mais obviamente ligado a uma abordagem sensacionalista é o facto de, naquela construção de primeira página, se ter tomado a parte pelo todo, pondo em realce os múltiplos aspectos negativos da amamentação (como se de dados absolutamente irrefutáveis se tratasse...) e esquecendo "o outro lado da medalha", aliás abordado em alguma medida nos textos do trabalho. Pegar só num bocadinho da informação, por regra a mais chamativa a um nível superficial, e dá-la como se fosse "toda" a informação, não é rigoroso, manipula e induz em erro. Concorda com isso, aliás, o director do PÚBLICO: "A fórmula da primeira página era infeliz pois não retratava correctamente o que vinha nos textos do interior. Só apresentava um lado do problema".

Sensacionalismo é, também, sugerir aos leitores que se tem aquilo que de facto não se tem, ou dar a entender que se dispõe de certezas inquestionáveis quando o que há são opiniões, hipóteses, casos isolados. Como dizia um leitor, ao ver-se na primeira página uma chamada com aquelas afirmações tão categóricas, esperar-se-ia encontrar no interior "algumas informações sérias sobre o assunto" - porventura, no âmbito da secção de Ciência, onde frequentemente se tratam matérias deste género, com um aprofundamento e um rigor que são um dos mais inovadores capitais do PÚBLICO. Ora o trabalho apresentado, independentemente de poder ser mais ou menos desenvolvido, não permitia conclusões tão taxativas como as que, com ligeireza, se lançavam na primeira página. Pior que isso: a manchete era, afinal, baseada num texto de opinião. O jornal fez de uma opinião uma notícia, deu-a como certa e apresentou-a como sua, sugerindo uma investigação jornalística que de facto não teve lugar.

Sensacionalismo é, enfim, fazer apelo a reacções mais baseadas na emoção do que na razão, simplificando questões, tocando sentimentos, suscitando respostas primárias e imediatas em vez de fornecer elementos que permitam pensar, compreender, formar opinião. E, neste contexto, não interessa só aquilo que num jornal se diz, mas também o modo como se diz.

Pelo que vimos, parece claro que a informação tão sonoramente veiculada pela primeira página do jornal não era completamente verdade. Não sendo mentira (ou, pelo menos, não estando solidamente demonstrada, em termos científicos, num sentido ou noutro), era, pelo menos, só uma parte da verdade. Mas, mesmo que houvesse mais fundamento noticioso, devia ela apresentar-se assim, sem mais? Esta é a questão, complexa, levantada por uma outra leitora, para quem os jornais não podem ser insensíveis - muito menos no modo como constroem "manchetes garrafais" - ao melindre de certos assuntos e "às suas implicações, até em termos simbólicos, nos mecanismos básicos de segurança e equilíbrio das pessoas".

José Manuel Fernandes diz, a este propósito: "O tema da manchete é realmente chocante - e, como tal, pode chocar mães que estejam a amamentar. Só que a realidade é realmente chocante. (...) Uma mãe consciente, mesmo chocada, é sempre melhor, do meu ponto de vista, do que uma mãe ignorante dos riscos que corre o seu filho".

Que a realidade com que diariamente nos confrontamos é por vezes chocante, não se contesta. Que os assuntos não devem ser tabu só pelo facto de bulirem com áreas mais sensíveis das pessoas, aceita-se. Mas há muitas maneiras de tratar assuntos sensíveis e chocantes. Aliás, é precisamente por aqui que passa uma das distinções fundamentais entre jornais: enquanto leitores, escolhemo-los e apreciamo-los não só pelos temas que escondem ou revelam (boa parte dos temas da actualidade são, hoje, comuns à generalidade da Comunicação Social) mas pelo modo específico como os abordam, como os desenvolvem, como os tratam. E, claro, pelo modo como os apresentam. Mesmo quando são, em si, potencialmente chocantes...

Entre uma mãe chocada e uma mãe ignorante, venha o diabo e escolha! Decerto todos preferiremos contribuir para ter mães séria e serenamente informadas, conscientes dos perigos mas também conhecedoras daquilo em que é possível acreditar, e que é possível fazer, no sentido de melhorar as coisas. Para um jornal - e, por maioria de razão, para um

jornal como o PÚBLICO, cujo projecto informativo cria tão altas expectativas junto dos leitores - é esse o desafio diário.

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