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Caso Arquivado, Assunto Encerrado?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 12 de Março de 2000

Será que o PÚBLICO andou, nos últimos cinco anos, a fazer "uma campanha" contra o ex-deputado do PSD Nuno Delerue, julgando-o e condenando-o na praça pública - independentemente das decisões dos tribunais -, prejudicando o seu bom nome e afectando a sua honorabilidade? Esta é, em síntese, a questão suscitada pela longuíssima reclamação que aquele antigo dirigente social-democrata dirigiu ao provedor, a propósito de um caso em que esteve envolvido desde 1995 e que conheceu agora o seu epílogo judicial.

Comecemos por nos situar, recordando as etapas mais relevantes da história.

Em Janeiro de 1995, o PÚBLICO apresentou um desenvolvido trabalho, fruto de investigação própria, em que se levantavam dúvidas sobre a legalidade de alguns negócios privados de Nuno Delerue - à data, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD. "Delerue pediu facturas falsas", titulava-se na primeira página. O caso maior girava em torno de um suposto pedido de Nuno Delerue a um empreiteiro para que emitisse duas facturas, em nome de uma empresa de Esposende de que fora administrador, facturas essas que não corresponderam a qualquer trabalho realizado pelo emitente para a dita empresa. De acordo com o PÚBLICO, o próprio empreiteiro confirmara os factos, e o mesmo fizera Delerue (cujas declarações apareciam citadas no jornal) - com a ressalva de que considerava não ter, nisso, cometido qualquer ilegalidade. Um segundo caso concitava as atenções do jornal na mesma edição: um processo aparentemente nebuloso de compra de terrenos e licenciamento de construção para um conjunto de casas (três, dizia-se) de que alegadamente era proprietário em Cinfães do Douro.

Estas suspeitas levaram o dirigente social-democrata a abandonar os seus cargos políticos, dispondo-se a esperar até que a situação fosse cabalmente esclarecida.

Questões de pormenor e questões de fundo

Em Novembro de 1998, Delerue voltou à primeira página do PÚBLICO: na sequência das investigações a que procedera, o Ministério Público julgou encontrar matéria bastante para formular uma acusação. E acusou o ex-deputado (bem como outros responsáveis da dita XPZ) dos crimes de fraude fiscal e burla qualificada. Em causa, a presumível contabilização de facturas falsas - que teriam implicado um lucro fiscal indevido de 15.563 contos, entre impostos e juros.

Seguidos os trâmites habituais, e tendo os arguidos apresentado a sua contestação, chegou-se, já em Janeiro de 2000, ao debate instrutório. No dia 1 de Fevereiro, o juiz de instrução do Tribunal Judicial de Esposende decidiu: arquivou o processo no respeitante ao crime de fraude fiscal e entendeu não pronunciar os arguidos (entre eles Nuno Delerue) quanto ao crime de burla. Isso mesmo ficou a saber-se pelo PÚBLICO, que explicou também (na edição de 3/2/00) que as decisões judiciais estavam fundamentadas no facto de os arguidos terem, entretanto, "reposto a verdade fiscal" - ou seja, pago os impostos que o fisco considerara em dívida, por causa de umas facturas tidas por fictícias. Nessa mesma edição, o jornal dedicava toda uma página à conferência de Imprensa que Delerue dera na véspera, e durante a qual sustentara ter sido "inocentado pela Justiça".

São muitas as razões de queixa apresentadas contra o PÚBLICO, umas mais de pormenor, outras mais genéricas. Destas, sobressai a acusação de que "houve uma campanha" do jornal contra a sua pessoa, deixando-se ainda subentender que pode ter sido feita de modo comandado do exterior ("Será que, ao longo destes cinco anos, o PÚBLICO não se [perguntou] que outros interesses poderiam estar a motivar as [suas] fontes de informação?", questiona).

Não é este, naturalmente, o entendimento dos diversos jornalistas do PÚBLICO que, entre 1995 e 2000, escreveram sobre o processo, e que recusam quaisquer motivações extra-jornalísticas. No essencial, mostram-se convictos de ter procedido em consonância com as regras éticas e deontológicas, embora sejam os primeiros a admitir alguns erros. Por exemplo, assumem o lapso de terem referido Nuno Delerue como "sócio" da empresa XPZ, quando ele só foi administrador. Concordam que pode ser considerada "de mau gosto" a graça que fizeram com o nome da empresa XPZ - "algo parecido com uma associação secreta", escreveu-se. Aceitam a correcção do ex-deputado de que a dita firma só recebeu 328 mil contos de subsídios comunitários; a afirmação de que teria recebido "mais de meio milhão de contos" contabilizava uma parcela suplementar de dinheiro que acabou por não ser concedida (e este facto não foi, como devia, confirmado em tempo). Não contestam a afirmação de Delerue de que só é proprietário de "uma casa e um anexo" em Cinfães do Douro mas explicam que, à data, falaram de "três casas" porque consultaram as descrições matriciais dos terrenos por ele adquiridos e elas eram três, como três foram os alvarás de licença para ali emitidos.

Salvo melhor opinião, contudo, estes lapsos, mesmo que indesejáveis, não devem fazer-nos perder de vista o verdadeiro fundo da questão. Ou, desde logo, as duas acusações mais graves feitas ao PÚBLICO no plano dos princípios: 1) não se ter ouvido suficientemente o visado e, portanto, não se ter respeitado o "princípio do contraditório"; 2) ter-se alegadamente "condenado" Delerue mesmo depois de o tribunal o ter, supostamente, "inocentado".

Sobre a primeira, dizem os jornalistas Eduardo Dâmaso e José Augusto Moreira: "O PÚBLICO (...) ouviu a detalhada versão do então deputado e publicou-a, com destaque, no próprio dia em que apresentou a notícias sobre as facturas. Quando o Ministério Público acusou e o PÚBLICO noticiou, a única coisa que poderíamos ter feito era obter uma reacção do ex-deputado a este facto. Sobre a questão substantiva das facturas falsas e da aparente ilegalidade fiscal que indiciávamos na primeira notícia, não havia mais nada a perguntar".

Parece razoável. Não obstante, concorda-se que teria sido útil ouvir os comentários de Delerue à acusação do Ministério Público; mesmo que o princípio do contraditório estivesse respeitado e não houvesse mais matéria substancial a questionar, a informação do PÚBLICO teria ficado mais rica e mais completa. As versões dos acusados não se ouvem apenas para lhes dar o irrecusável direito de defesa, à maneira burocrática de quem cumpre uma obrigação formal, mas para fornecer aos leitores o máximo de elementos (factos, interpretações, opiniões) que permitam a compreensão das situações. A própria Direcção do PÚBLICO, pela voz do director-adjun to José Queirós, entende também, a este respeito, que os jornalistas não mostraram falta de isenção, mas reconhece que "teria sido preferível, até por causa do tempo entretanto decorrido, ter voltado a ouvir Delerue".

A função do jornal e a função dos tribunais

A segunda acusação é o cerne do caso. No fundo, sugere-se que o jornal pode ter funcionado como uma espécie de "tribunal", antes e depois da intervenção dos tribunais - ou mesmo contra eles.

É evidente que a função do jornal não é julgar. Mas não é menos evidente que um jornal com as características do PÚBLICO, como já aqui tem sido dito, não pode limitar-se a relatar os factos nus e crus, demitindo-se das suas responsabilidades de aprofundar a informação, de interpretar os dados, de estabelecer relações de causa e efeito, de procurar (e ajudar a) compreender a complexidade do real.

O jornal provocou esta polémica por ter cumprido um dos seus mais nobres deveres: recebeu indícios de que uma conhecida figura política podia estar implicada em procedimentos menos lícitos e tratou de investigar o assunto a fundo. O que publicou parecia ter algum substracto, e a prova é que tanto o fisco como as instâncias judiciais instauraram processos. A partir daí, o PÚBLICO noticiou o andamento desses processos, contextando a informação e procurando percebê-la.

Será que o caso não deu em nada? Não é verdade. No plano fiscal, a XPZ teve que pagar alguns milhares de contos em falta, e que a Repartição de Finanças de Esposende certificou tratar-se de "liquidações adicionais" de impostos decorrentes de "Operações Simuladas" (sic). No plano judicial, o processo terminou com um arquivamento (crime de fraude) e com uma não pronúncia (crime de burla). Aqui, mais uma vez, o PÚBLICO não se limitou a noticiar o desfecho mas, como lhe competia, foi tentar perceber o que se passara, lendo e interpretando o despacho do juiz. Isso era tanto mais necessário quanto Nuno Delerue, ao dar a conferência de Imprensa, não explicara os motivos do arquivamento.

No dia seguinte, o PÚBLICO reportava a conferência de Imprensa mas, simultaneamente, acrescentava o dado novo entretanto confirmado: o juiz decidira arquivar o processo com base no facto de os arguidos (através da empresa de que eram administradores) terem já pago os impostos suplementares supostamente gerados pelas facturas falsas. E, no seguimento, o arquivamento do crime de fraude fiscal com esta base consumiu o crime de burla.

Interpretação "autêntica" e interpretações legítimas

Não cabe ao provedor decidir qual a interpretação mais correcta para o despacho de arquivamento: se a dos jornalistas do PÚBLICO (que viram na decisão do tribunal, como na própria prática dos arguidos, a aceitação implícita de que teria havido algumas irregularidades com facturas - daí eles terem pago o excedente e beneficiado das leis que "amnistiam" estas situações), se a de Nuno Delerue (que vê no arquivamento uma simples declaração de inocência, insistindo em que o juiz não confirmou, nem implícita nem explicitamente, a existência de facturas falsas, porque nem sequer chegou a analisar a matéria). Sobre interpretações de despachos sempre complexos, dificilmente haverá acordo.

No entanto, podemos ajuizar se a interpretação do PÚBLICO, independentemente de ser ou não a mais "autêntica", era legítima, era fundamentada e era feita de boa fé. Isso é o que importa para ver se, nos planos ético e deontológico, o jornal se comportou adequadamente: uma coisa é errar por má fé, ou por ligeireza de análise, ou por intuito persecutório, outra coisa é errar apesar de se terem tomado todas as precauções e, com seriedade e empenho, dado todos os passos necessários para a descoberta da verdade.

Analisada a questão, não parece que a interpretação do PÚBLICO seja destituída de senso. De facto, a administração fiscal encontrou na XPZ uma série de facturas falsas e exigiu pagamentos suplementares de imposto. De facto, a empresa pagou esses excedentes (diz que o fez só para não ser mais penalizada em termos económicos, mas o certo é que o fez - e, mais tarde, invocou perante o juiz essa regularização fiscal). De facto, foi a confirmação do pagamento que levou o juiz a arquivar o processo de fraude fiscal e, em consequência, a não pronunciar os arguidos por burla - invocando sempre os preceitos legais e a jurisprudência aplicáveis aos casos de facturas falsas. O juiz nunca diz taxativamente que houve ou deixou de haver facturas falsas, mas as suas decisões foram tomadas como se houvesse.

Resta a vontade, insistentemente repetida por Nuno Delerue, de que a matéria de facto tivesse sido julgada e não arquivada, para poder provar a sua razão. Mas, também aí, eram os arguidos quem tinha "a faca e o queijo" na mão: podiam não ter pago os impostos de que discordavam; podiam não ter invocado esse pagamento no tribunal; podiam porventura ter-se oposto ao arquivamento do processo ou encontrado maneira de recorrer da decisão judicial. Não o fazendo, e usufruindo na prática de uma medida que é uma espécie de perdão para todos quantos neste país recorreram a facturas falsas, permitem que algumas dúvidas subsistam - e arriscam-se a interpretações negativas, mas nem por isso ilegítimas.

O PÚBLICO podia, aqui e ali, ter tido mais cuidado nos detalhes, ter sido mais prudente em certas afirmações categóricas, ter olhado com atenção para os textos das legendas. É certo, por outro lado, que devia ter dado notícia do desfecho judicial (também um arquivamento) a propósito das casas de Delerue em Cinfães. Mas, no essencial, parece-nos ter agido com correcção, com respeito pelos princípios deontológicos, com diligência e seriedade na busca da verdade possível, e com propósitos jornalísticos - ou seja, de interesse público. 

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