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Sensibilidade e Bom Senso
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 27 de Fevereiro de 2000

Já lá vai quase um século desde que os portugueses entenderam, no que toca às responsabilidades de gestão do país, trocar a Monarquia pela República, mas nem por isso certas questões da realeza deixaram de suscitar, aqui e além, sensibilidades muito particulares. Atestam-no as vozes que, esta semana, se mostraram desagradadas com o modo como o PÚBLICO fez a cobertura jornalística do baptizado, na Sé do Porto, do terceiro filho dos duques de Bragança.

O leitor António Carvalho fez chegar ao provedor o seu protesto contra um texto do editor-chefe Luís Costa, publicado no Local Porto (edição de 19/2/00). No entender do leitor, seria especialmente inadmissível uma determinada frase daquele jornalista (esta: " a serem fidedignas as suas origens histórico-genealógicas"), pois levantaria "suspeitas sobre a paternidade da criança".

"Não escrevi o que o leitor diz que escrevi", explica Luís Costa. De facto, como se percebe pelo contexto, a referência às origens histórico-genealógicas tem a ver apenas com o pai, D. Duarte, e não com a criança que foi baptizada. Mas, mesmo assim, será que está ali alguma suspeita sobre a paternidade de D. Duarte? Tal hipótese "nunca passou sequer pela cabeça" do jornalista. Embora conceda que a expressão utilizada "possa lançar dúvidas", Luís Costa esclarece: "O que pretendi foi apenas remeter as pessoas para a controvérsia que, há já alguns anos, surgiu em torno da linha sucessória da Casa de Bragança".

Num outro plano, também a reportagem sobre este evento, publicada na edição do PÚBLICO de 22/2/00 ("Infante D. Dinis mostrado ao povo do Porto - Um baptizado em quatro actos") mereceu vivas críticas do leitor Pedro de Salter Cid. Independentemente de não ter gostado do trabalho jornalístico, faz duas acusações sérias: que os relatos da jornalista Alexandra Campos, autora da reportagem, "não só não eram verdadeiros como foram errada e propositadamente alterados", e que se "ridicularizou a Família Real Portuguesa" (sic).

A jornalista não vê em que se possa basear o leitor para contestar a veracidade dos seus relatos, sugerindo que o problema só pode estar nas interpretações ou nas "justificações" encontradas para certos factos. E dá o exemplo do célebre bolo de 200 quilos que foi distribuído às fatias pelo povo. Alexandra Campos escreveu que o bolo "acabou rapidamente devorado pela pequena multidão que se empurrava". Nada Mais. Ora o leitor 'leu', nestas palavras, uma insinuação de que o bolo "era pequeno". E, como este, outros mal-entendidos terão surgido, não relativamente ao que o texto "disse" mas ao que, supostamente, "quis dizer".

Quanto à eventual "ridicularização" dos descendentes da Coroa portuguesa, a responsável pelo trabalho comenta: "O baptizado, no Porto, do terceiro filho do duque de Bragança extravasou o simples acto religioso e social, até porque a participação da população portuense na festa era um dos objectivos declarados da organização e ainda porque o acontecimento se reflectiu na vida da cidade, nomeadamente por ter obrigado a um corte de trânsito. E estas questões constituíam o fulcro do interesse jornalístico do evento, pela sua singularidade. Daí o tom irónico da reportagem e o facto de se ter posto a tónica na perspectiva da população sobre o acontecimento".

Com o devido respeito pelas sensibilidades de cada um, e sabendo que as opções concretas de um jornal nunca conseguem agradar à totalidade (e razoável heterogeneidade) dos seus leitores, apetece desabafar: também não exageremos...

Concordaremos que já não há propriamente uma questão Monarquia "versus" República a dividir o país, e os herdeiros da casa de Bragança são olhados até com alguma simpatia - o próprio epíteto de "rei" com que a voz comum gosta de se referir a D. Duarte, mesmo à mistura com um sorriso condescendente, é tudo menos ofensivo. Mas fará sentido olhar para estas coisas como se de uma autêntica "causa nacional" se tratasse?... Mais: o facto de os organizadores terem querido transformar o baptizado do bebé num grande acontecimento mundano, com fotógrafos requisitados às revistas sociais, com muito colunável e muito chique à mistura, com encenações e protocolos anacrónicos para certas sensibilidades deste nosso tempo, também condiciona o tratamento mediático do evento.

Todavia, uma coisa é não apreciar o tom jocoso de diversas passagens do trabalho jornalístico, ou até legitimamente duvidar do gosto deste ou daquele pormenor, e outra bem diferente é encontrar aí intuitos de ridicularização ou apoucamento de pessoas, para já não falar das suspeitas de informação falseada e mesmo de preconceitos políticos ("facciosismo republicano", acusava o leitor). Não parece que seja caso para tanto, se pusermos estas coisas no seu devido lugar - que o têm, sem dúvida, mas não mais do que esse.

De algum modo, retoma-se a mensagem que já aqui ficou na semana passada: não nos iria nada mal um pouquinho mais de "fair play", de sentido de humor, de tempero na sisudez grave com que tanto tendemos a apreciar a cena pública, de tolerância face a olhares diferentes dos nossos, de adequada distinção entre o que justifica o nosso empenhado combate e o que merece apenas o nosso saudável sorriso. E os jornais, que tantas vezes (justamente) acusamos de tão chatos, tão circunspectos, tão maçudos e maçadores, também podem colaborar nesta causa comum. Com bom senso e bom gosto, claro.

Para tristes e graves, já bastam as tantas notícias que tão frequentemente não podem deixar de ser dadas pela comunicação social - como a do enorme acidente que ocorreu esta semana, na autoestrada do Norte (A1), e que provocou quatro mortos mais uns tantos feridos. O PÚBLICO deu ao assunto o relevo que ele merecia, dedicando-lhe o "Destaque" do dia, puxando-o com fotografia à primeira página, fazendo reportagem no local, analisando causas, recordando os números da desgraça da nossa segurança rodoviária.

Apesar de todo este labor, não se forneceu uma informação elementar neste tipo de situações: a identidade das vítimas. Opção editorial? Dificuldades técnicas? Lapso? "Foi lapso, e disso me penitencio junto dos leitores", admite o director-adjunto Adelino Gomes, responsável pela edição do trabalho. E os seus autores directos, Elizabete Vilar e Ricardo Dias Felner, co-responsabilizam-se pela falha.

Embora Adelino Gomes recorde que em certas circunstâncias "não é eticamente correcta" esta divulgação (por exemplo quando a identificação é insuficiente ou quando subsistam dúvidas sobre se a família já foi avisada pelas autoridades), não era aqui o caso, no respeitante aos mortos. Já quanto aos feridos graves, defende que a divulgação dos seus nomes pode gerar "confusão e até alarme indesejável", pois o jornal só é distribuído muitas horas depois da ocorrência dos factos e os diagnósticos podem ter evoluído. Aí, portanto, aconselha reserva - no que merece todo o acordo.

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