.
Antecipação: Um Trunfo e Um Risco
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 6 de Fevereiro de 2000

No passado dia 23/1, em notícia da sua secção Política a propósito de Timor-Leste, o PÚBLICO titulava assim: "Conselho Consultivo só espera apoio de Lisboa - Escudo quase certo na transição".

Escassos dois dias depois (25/1), em nova notícia sobre o mesmo assunto, dizia o jornal em grande título: "UNTAET optou pelo dólar norte-americano para moeda oficial da transição - Lisboa derrotou escudo".

Ou seja: apresentou-se como "quase certa" num determinado sentido uma decisão prestes a ser tomada pelo Conselho Consultivo Nacional (CCN) de Timor-Leste mas, na hora da verdade, tudo saiu ao contrário. Afinal, não seria assim tão "certo" que o organismo timorense estivesse "quase" a escolher o escudo em vez do dólar. Que se passou? Alguma deficiência de informação? Imprevistos de última hora? Insuficiente ponderação das forças em presença? Ou... precipitação?

(Esclareça-se que esta notícia era da agência Lusa e apareceu identificada como tal. Mas a circunstância pouco releva para o caso: a partir do momento em que o PÚBLICO decidiu publicá-la, foi porque lhe deu credibilidade e se co-responsabilizou por ela).

O leitor Silvério Moura, do Porto, não gostou nada da actuação do jornal neste episódio e escreveu ao provedor: "'Escudo quase certo na transição' não passou de imperdoável aldrabice, não só contrária ao Código Deontológico do Jornalista como também desrespeitadora do próprio Estatuto Editorial desse periódico". Mostrando-se conhecedor deste documento, recorda que o PÚBLICO afirma "recusar o sensacionalismo e a exploração mercantil da matéria informativa" e que "é responsável apenas perante os seus leitores"; daí não aceitar (e muito bem) que o jornal eventualmente queira culpar apenas a agência Lusa por este "fracassado exercício de futurologia".

Independentemente da dureza do diagnóstico, a verdade é que esta questão toca um ponto sensível do trabalho jornalístico: a vontade - para não dizer necessidade - de antecipar informação sobre certos acontecimentos (em especial quando se está em vésperas de decisões que concitam as atenções gerais), de modo a dar as notícias "em primeira mão". É uma vontade legítima, na medida em que permite valorizar o próprio produto/serviço no contexto de um mercado concorrencial (aliás, o Livro de Estilo do PÚBLICO lembra que "obter e noticiar em primeira mão tudo o que for notícia é a primeira obrigação profissional do jornalista"), mas é também um caminho cheio de armadilhas e de riscos, pois não pode nunca confundir-se com mera futurologia, e muito menos com propaganda ou manipulação da informação num determinado sentido. Daí o Livro de Estilo relativizar a importância da "primeira mão" com o elementar aviso: "Mas para ter notícias é preciso estar bem informado". E mais: "Se subsistirem dúvidas quanto á veracidade de uma informação, é preferível adiar a sua publicação, sacrificando, inclusive, a actualidade". Isto para já não falar no dever do jornalista de "recusar o papel de mensageiro de notícias não confirmadas, boatos, 'encomendas' ou campanhas de intoxicação pública".

Quanto a doutrina, estamos, portanto, esclarecidos. O que importa agora perguntar é se algum destes preceitos foi aqui esquecido ou, pelo menos, insuficientemente considerado.

O editor da secção de Política, Eduardo Dâmaso, pensa que o PÚBLICO "tinha boas razões para acreditar na informação veiculada pela agência Lusa" a propósito da iminente escolha da moeda para Timor-Leste. Sabia-se que havia uma sensibilidade forte no seio da Conselho Nacional de Resistência Timorense (CNRT) a favor da opção pelo escudo, mesmo sem esquecer que tanto o dólar australiano como o dólar norte-americano eram igualmente candidatos fortes. "Face às informações disponíveis, pensámos que seria natural a opção por qualquer uma das três moedas, sem avaliar convenientemente o facto de uma reviravolta poder parecer muito contraditória aos leitores", acrescenta Eduardo Dâmaso, que recorda ainda o facto de a agência Lusa, dispondo de uma jornalista sua no território (o que já não sucedia com o PÚBLICO), ter vindo a "produzir uma informação credível" sobre os assuntos timorenses.

Explicados os porquês da decisão, nem por isso o editor da Política deixa de concordar que "as dúvidas do leitor são pertinentes". "A avaliação da informação que nos chega das mais diversas proveniências é uma obrigação permanente dos jornalistas e dos editores. E o risco dessa avaliação não é menor do que a obrigação", conclui.

Há motivos para crer que a informação a propósito do favoritismo do escudo como moeda para Timor-Leste tinha alguma base real. A notícia da agência Lusa, embora não identificando quaisquer fontes, citava declarações de responsáveis ligados ao processo de decisão e adiantava argumentos plausíveis que sustentavam a tese. Além de que era bem conhecida a preferência de alguns dirigentes pela moeda portuguesa - no pressuposto de que Portugal se empenharia nessa solução (algo que, disse-se depois, não terá acontecido no grau desejado). Assim sendo, concede-se que não tenha havido propósitos menos claros de pressão ou manipulação a favor de uma das escolhas.

Não obstante, e independentemente de negociações de última hora, também parece legítimo afirmar ( é fácil fazê-lo "a posteriori"...) que houve alguma precipitação na exacta avaliação das forças em presença. E do que estava em causa, afinal: não só argumentos políticos e afectivos, mas aspectos económicos e estruturais de razoável melindre.

Mas então, se era tão arriscado avançar com uma "quase certeza" naquela altura, por que motivo decidiu o PÚBLICO fazê-lo? E lá estamos outra vez na tal vontade/ necessidade de antecipação, um tema mais complexo do que á primeira vista parece.

Um jornal confronta-se, hoje como nunca, com este problema: aquilo que "acontece" é difundido quase no momento pela rádio ou pela televisão. Saindo muitas horas depois, dadas as contingências do seu processo de fabrico, arrisca-se a dar notícias que já toda a gente conhece. E este é um processo inelutável, porque inerente às especificidades técnicas dos diferentes meios. Assim, numa perspectiva de acrescentar valor à informação, a imprensa escrita tem de investir sobretudo no "antes" e no "depois" dos acontecimentos. Mais do que reportar factos já conhecidos das pessoas (quase todos ouvimos um pouco de rádio ou de televisão), preocupa-se em dar novos elementos, em dissecar causas e projectar consequências, em aprofundar a informação necessariamente rápida dos outros meios, em interpretar os dados, em estabelecer relações menos visíveis à superfície. E, claro, preocupa-se também em antecipar, na medida do possível, certos acontecimentos ou processos, com tudo o que isso exige de recolha, de investigação, de leitura de sinais incipientes. É o seu trunfo.

Também um risco? Sem dúvida. Mas risco calculado, se gerido de boa fé e com sentido profissional. Porque, para além de ser risco, é (e cada vez mais será, face ao moderno panorama mediático) uma nobre vocação da imprensa escrita. Ou até condição da sua sobrevivência. 

Contactos do provedor do leitor:
Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO
Telefones: 22-6151000; 21-7501075
Fax: 22-6151099; 21-7587138
E-mail: provedor@publico.pt