Acerca da "Verdade" e dos "Factos"
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 2 de Janeiro de
2000 A Embaixada de Angola em Portugal, pela pena do seu adido de
Imprensa, António José Ribeiro, entendeu dirigir-se ao provedor para criticar duas
notícias do PÚBLICO (ambas publicadas em 17/12) que, em seu entender, contêm
"informações que distorcem a realidade".
Num dos textos, sob o título "Ex-opositores angolanos são conselheiros do
Presidente", noticiava-se que Eugénio Manuvakola, da UNITA-Renovada (grupo
dissidente do partido liderado por Jonas Savimbi) , e Lucas Ngonda, da FNLA, tinham
acedido ao convite do presidente angolano, José Eduardo dos Santos, para integrarem o
Conselho da República - um órgão de consulta do chefe do Estado.
Considera a Embaixada de Angola que "se induz o leitor para a ideia falsa" de
que aqueles dois políticos "passaram a 'conselheiros' do Presidente de Angola, o que
não é verdade". E adianta: "O lugar de membro do Conselho da República
decorre do facto de as personalidades que o ocupam serem líderes de partidos com assento
no Parlamento. (...) Convenhamos que ser membro do Conselho da República (ou do Conselho
de Estado, em Portugal) é muito diferente de se ser 'conselheiro' do Presidente, no
sentido 'orgânico' que lhe é dado e como, de forma malévola, o artigo o faz crer".
No entender da representação diplomática, é ainda criticável que o PÚBLICO se refira
àqueles dois políticos como "ex-opositores", pois com isso "faz
crer" que eles "deixaram de fazer parte da oposição, o que também não é
verdade".
Solicitada a comentar as críticas, Margarida Santos Lopes, editora da secção
Internacional, explica que o texto "é uma compilação de telexes da AFP e da Lusa
[agências noticiosas], sendo que a agência francesa usava as expressões 'ex-opositores'
e 'conselheiros do Presidente' e nenhuma das duas [lhe] pareceu ofensiva". Quanto a
terem deixado de ser "opositores" e passado a integrar o círculo do poder, como
se dizia no antetítulo da notícia, a jornalista entende que isso "não se pode
negar", "já que, como sublinhou a Lusa, foi a primeira vez em muitos anos de
existência do Conselho que representantes de partidos da oposição (tolerada pelo
regime) foram admitidos neste órgão". E conclui: "Continuo a achar que, em
Angola, conselheiros do Presidente ou membros do Conselho da República é exactamente a
mesma coisa".
Esclareça-se, desde já, que o facto de esta notícia ter sido redigida com base em
informações difundidas por agências noticiosas (claramente citadas no texto, como é de
boa norma) não exime o PÚBLICO de responsabilidades. Ao publicar essas informações e
as interpretações complementares, o PÚBLICO considera-as fiáveis, de algum modo
assumindo-as como suas. Mas não deixa de ser sintomático que uma determinada
"leitura" deste episódio - "leitura" que a Embaixada contesta - seja
partilhada pelo PÚBLICO e pelas duas agências referidas.
Este caso tem um particular interesse porque ajuda a reflectir sobre um dos grandes
mitos da actividade jornalística: o de que "os factos falam por si", ou
"contra factos não há argumentos". Dito por outras palavras, sugere-se que
reportar os factos puros e simples é a garantia de reportar a verdade. E isso está longe
de ser assim: mesmo sendo verdadeiros, nem sempre os factos são "a verdade", ou
"toda a verdade".
Vejamos o episódio em análise. No estrito plano da factualidade, não custaria dar
alguma razão à crítica da Embaixada: Eugénio Manuvakola e Lucas Ngondo foram
efectivamente nomeados membros do Conselho da República, um órgão oficial do Estado
angolano, com constituição e funções definidas por lei, etc., etc. Ou seja, far-se-ia
sobre este acontecimento uma notícia semelhante à que se faria, em Portugal, sobre a
nomeação de Durão Barroso e Carlos Carvalhas para o Conselho de Estado. E assim como
não teria sentido, nesta última situação, dizer que Barroso e Carvalhas tinham sido
nomeados "conselheiros" de Jorge Sampaio, ou tinham passado a integrar "o
círculo do poder", também não teria sentido dizê-lo para o caso de Angola.
Isso seriam factos. Mas seria a verdade?... É verdade que o Conselho da República de
Angola pode colocar-se em paralelo - na sua constituição, no seu funcionamento, na sua
articulação com os órgãos de poder -com o Conselho de Estado de Portugal? É verdade
que "quem representa a oposição política em Angola" são apenas a
UNITA-Renovada e a FNLA? É verdade que, quanto ao mais, reina a calma em todo o país? É
verdade que a satisfação de José Eduardo dos Santos ao receber Manuvakola (um
dissidente da UNITA) e Ngondo (líder de um partido com cinco deputados) no Conselho da
República significa, finalmente, a paz e a regularização do funcionamento pleno das
instituições democráticas do país? Só por muita ingenuidade se pode afirmar tal...
Um jornalismo exigente e crítico como o que o PÚBLICO pretende fazer, e como define
publicamente no seu Livro de Estilo, não se fica pelos factos. Deve, naturalmente,
relatá-los com o máximo de objectividade e rigor (e fê-lo na notícia em apreço, como
a própria Embaixada concede, embora diga que o fez "algo contraditoriamente" e
só "no quinto parágrafo"), mas deve tentar ver para além deles, na tal
procura da verdade possível - a verdade que às vezes se esconde por trás dos factos,
que está antes ou depois deles, mas que é essencial para a compreensão plena da
realidade.
Contextar, interpretar, lembrar, relacionar o que não se vê relacionado à primeira
vista, buscar causas, cruzar dados, tudo isso faz parte de um jornalismo crítico,
profundo, realmente interessado em fornecer chaves para a compreensão da complexidade que
nos rodeia. Trata-se de um processo naturalmente subjectivo, mas que não se confunde com
opinião: interpretar e contextar os factos é uma coisa, opinar sobre eles é outra.
Dito isto, parece que a notícia em análise é adequada e está conforme com os
princípios orientadores do PÚBLICO. Conta o que se passou mas, mais que isso, ajuda-nos
a perceber o significado daquilo que se passou - e também com recurso a factos, a outros
factos, passados e presentes, que acrescentam informação. Seria mais cómodo relatar
burocraticamente que "fulano e fulano tomaram posse", "disseram isto e
aquilo", e ficar por aí. Seria mais cómodo - mas menos interessante e menos útil
para os leitores. Sobretudo os que têm um insuficiente conhecimento da complexa realidade
angolanas e que esperam do "seu" jornal algo mais do que meros relatos de
cerimónias oficiais.
A segunda crítica da Embaixada de Angola prende-se com a publicação de um mapa da
zona sul do país (a acompanhar a notícia "Namíbia na linha de fogo de
Savimbi"), on de simultaneamente se referem algumas localidades conquistadas à UNITA
pelas tropas do Governo de Luanda. Diz a Embaixada que, naquela zona, há muitas mais
localidades recuperadas pelas Forças Armadas Angolanas - como, aliás, foi dito ao
PÚBLICO em entrevista recente do secretário-geral do MPLA, João Lourenço.
A editora da secção Internacional, Margarida Santos Lopes, admite a desactualização
do mapa, embora recorde que "as guerras estão constantemente a mudar áreas e
fronteiras", havendo localidades que "hoje estão em poder de uma parte e
amanhã de outra". Nem sempre é possível actualizar os dados em tempo útil, para
já não falar na dificuldade de obter informações fidedignas. Em todo o caso, esclarece
ainda a jornalista, este mapa pretendia "sobretudo mostrar as regiões de que se
falava [no texto] e, em particular, a faixa de Caprivi e a Jamba".
Embora a explicação pareça justa, todos concordaremos que é sempre preferível os
mapas estarem acertados pelo dia que passa. Podendo ser, claro.
Contactos do provedor do leitor:
Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO
Telefones: 22-6151000; 21-7501075
Fax: 22-6151099; 21-7587138
E-mail: provedor@publico.pt
|
|
|