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Escrever em Português: Regras e Excepções
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 12 de Dezembro de 1999

Alguma vez havia de ser: hoje, é ao próprio provedor que cabe "enfiar a carapuça".

A coluna aqui publicada há duas semanas, sob o título "Um bom jornal exige uma boa escrita", tinha sido suscitada por múltiplas reclamações dos leitores a propósito das incorrecções gramaticais que volta e meia mancham os textos do PÚBLICO. A chamada de atenção mereceu diversas palavras de apreço, mostando como o assunto é sensível. Mas, precisamente por causa dessa sensibilidade, chegaram dos quatro cantos do país manifestações de leitores que, aplaudindo as preocupações do provedor, não deixaram de estranhar que ele próprio descuidasse a sua escrita no jornal. Referiam-se a quê, concretamente? Ao uso de palavras ou expressões estrangeiras, sem a correspondente tradução.

"Em meu entender, é mais grave o uso indevido ou desnecessário de estrangeirismos do que os erros ortográficos, porque provocam muito mais ruído na comunicação, chegando mesmo a cortá-la" — diz o leitor Luis Afonso Costa, da Maia, que coligiu uma nutrida lista de exemplos deste jornal. Um leitor algarvio critica o "uso e abuso de palavras e frases, principalmente em inglês, e que o próprio provedor não evitou no seu escrito". Especialmente corrosivo, escreve Eurico Alves, de Trancoso: "Aquilo que mais solenemente me irrita nos jornais é os senhores jornalistas (...) não serem capazes de escrever uma frase sem borrar a escrita em estrangeiro". Julga mesmo que o fazem "para se pavonearem", para "mostrar que são bons, finos e cultos". Também muito crítico, o leitor Joaquim Lagoeiro, de Lisboa, sugere que os responsáveis do PÚBLICO leiam com atenção o Livro de Estilo, pois ele próprio seria uma surpreendente "fonte de asneiras"...

Exageros à parte, estamos perante matéria que merece reflexão mais global, até porque nem sempre será tão simples como parece. Começando pela "carapuça" ao provedor: em causa estão as utilizações de uma expressão em inglês, citada literalmente de um colega americano ("if you got no grammar, you got no credibility") e do termo também inglês "copy desk" para designar uma especialidade profissional da Redacção do PÚBLICO.

Aceita-se sem problemas que a expressão inglesa devia ter sido traduzida — e daria, em português, qualquer coisa como "quem não domina a gramática, não tem credibilidade". Julgou-se, porventura mal, que os termos ingleses, até pela sua semelhança com os da nossa língua, não impediam a compreensão da frase do provedor americano, e por isso se manteve a citação original.

Já no caso do "copy desk", a questão é mais complexa, pois não há, em português, termo correspondente. "Revisor" não é a mesma coisa. Como se dizia na coluna de há duas semanas (sim, que o termo foi usado em inglês, como é da gíria jornalística, mas houve o cuidado de explicar em português a que função correspondia...), "copy desk" é alguém que revê os textos à procura de erros ou gralhas, mas que faz bastante mais que isso. Também é responsável por cuidar da harmonização do estilo definido para o PÚBLICO, por vigiar o cumprimento das regras técnicas e dos princípios deontológicos, por acautelar a clareza e fluência do texto. É uma função relativamente recente nos jornais portugueses — e adoptada, aliás, por poucos —, ao contrário do que sucede lá por fora. E não se vê, de facto, termo equivalente em português.

Temos, assim, dois problemas distintos no que toca ao uso de estrangeirismos na escrita jornalística: um, o recurso (por razões de hábito, de estilo, de gosto, até de facilidade) a palavras ou expressões que poderiam ser traduzidas ou para as quais poderiam ser encontrados correspondentes mais ou menos próximos em português; outro, o recurso a termos que, embora normalmente ingleses ou franceses, se transformaram quase em "apátridas" e correspondem, dentro de certas especialidades, a um autêntico jargão profissional.

Veja-se, a este propósito, o que se passa na área da economia. Parece evidente algum excesso na colonização anglo-saxónica, de tal modo que um leigo na matéria, por vezes, nem consegue entrar nas primeiras linhas de um texto polvilhado de "warrants", "takeovers", "stock options", "cash-flows", "downsizings" ou "MBO’s". Em contrapartida, à força de tanta banalização já ninguém se espanta com palavras correntes como "marketing" ou "ranking".

Mas não é só na economia. A linguagem política farta-se de falar do "timing" de uma candidatura, da "entourage" de um líder, da "task force" a criar. No domínio dos computadores, e a começar por "internet", é um mundo de "software", de "e-mails", de "links", de "bugs", de "chat-rooms" ou "downloads". E no desporto já ninguém procura, hoje, um termo português para o "black out" decidido por esta equipa ou para o "pressing" em que aquela devia jogar. Mesmo quem nunca aprendeu inglês.

É bem possível que algumas destas palavras (como a tantas já sucedeu no passado) venham a fazer parte da nossa língua oficial, mais ou menos adaptadas na grafia. As línguas são organismos vivos, em constante mutação, e a necessidade de nomear novas realidades ou processos acaba por sofrer, em tempos globalizados, a influência de quem chama primeiro — ou mais forte... É empobrecedor, sem dúvida, mas em parte ilelutável; noutra parte, contudo, depende de nós, da nossa atenção e do nosso esforço para mantermos activa uma língua tão rica como o português. Nossa, de cada um — e nossa, dos jornais.

Que deve fazer, nesta matéria, um jornal com as características particulares do PÚBLICO? Deve quase tentar a quadratura do círculo: por um lado, preocupar-se com que tudo aquilo que escreve seja entendido por todos os potenciais leitores (mas sem com isso empobrecer até níveis primários a sua diversidade vocabular, a sua criatividade estilística, a sua profundidade de abordagem); por outro lado, não prescindir de que, em certas especialidades, o rigor de terminologia seja adequado à exigência dos profissionais da áerea (mas sem com isso tornar os textos impenetráveis para um leitor medianamente culto).

É tarefa complicada, mas convenhamos que também seria demagógico — além de ineficaz — sugerir que, a partir de agora, se encontrasse sempre o correspondente português (por mais artificial que fosse) para uma qualquer palavra estrangeira. Será necessário, mais nuns domínios do que noutros, continuar a recorrer a termos ingleses ou franceses. Aí, o que se exige é que, logo na primeira citação, se explique em bom português o que quer aquilo dizer. Sempre.

Finalmente, convém não confundir o (ab)uso de terminologia estrangeira quase "cifrada" com o recurso, legítimo e enriquecedor, a palavras ou expressões cuja carga semântica vai bem para além do seu mero significado literal. Ao contrário do que sugere um leitor, parece-nos aceitável — e particularmente feliz — a escolha do título "Killing fields", feita por Miguel Sousa Tavares, para a sua crónica no PÚBLICO sobre os acidentes nas estradas. Alguns entenderão o sentido literal daquelas palavras; outros apreciarão o "piscar de olho" a um filme de que muito se falou; outros, porventura, chegarão ao fim do texto com vontade de aprender o significado exacto daquela expressão. Para além do gosto pessoal do autor (e de muitos gostos diversos se faz um todo mais estimulante), o valor semântico destas citações em contextos adequados não diminui a nossa compreensão — pelo contrário, aumenta-a, porque lhe alarga horizontes.

***

O espaço limitado de uma coluna semanal não permite, como seria vontade do provedor, dar seguimento imediato a todas as perguntas, críticas ou dúvidas dos leitores. O princípio, que aqui se tem seguido, de pegar em alguns casos pontuais e analisá-los como "casos exemplares", enquadradores de uma reflexão mais global sobre estes assuntos do jornalismo, obriga a uma escolha e deixa pelo caminho muitos temas interessantes. Ainda assim, reafirma-se a promessa de que todo o leitor terá, mais cedo ou mais tarde, a sua resposta. Recuperemos, portanto, alguns atrasos — mesmo em registo quase telegráfico:

• Cuidado com as siglas — Confiar demasiado na memória para descodificar siglas de uso corrente pode dar isto: traduzir MRPP por "Movimento Revolucionário Popular Português". Tem razão o leitor João Pedro Moura ao aborrecer-se com este erro cometido pelo PÚBLICO. Avive-se, então, a memória e faça-se justiça a um partido por onde tem passado tanta gente ilustre da nossa cena política: PCTP/MRPP quer dizer "Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses / Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado".

• O seu a seu dono — Em notícia recente sobre um conflito entre uma funcionária de limpeza e a empresa que a empregava, referia-se a dado passo: "... o sindicato a que a trabalhadora pertence...". E nada mais se dizia que identificasse a dita organização sindical, o que desagradou aos dirigentes. A notícia era pequena e o nome do sindicato grande mas, em nome do rigor, devia ter-se informado que o envolvido no caso era o "Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas" (STAD). A economia da sigla sugere, aliás, que o próprio sindicato tem consciência de como é pouco prático um nome tão extenso.

• Quem sabe, sabe — Uma já antiga notícia do PÚBLICO contava, com base em informação policial, que certa pessoa sofrera "queimaduras de terceiro e quarto graus". Os leitores Ana Cristina Marinho e Vítor Jesus, enfermeiros no Hospital da Prelada (Porto), esclarecem "não existe um quarto grau na classificação de queimaduras", mas apenas primeiro, segundo e terceiro. Agradece-se a clarificação — que aqui fica também, para benefício de todos.

• Escrever direito — Ainda ecoavam na memória os apelos do provedor do PÚBLICO a uma escrita mais atenta à gramática (coluna de 28/11/99) e já o leitor Gustavo Pimenta se exasperava, logo no dia seguinte, com a incorrecta grafia da palavra "privilegiar" numa entrevista ao ministro José Sócrates. Num sítio aparecia "previligiar", noutros "previlegiar", mas em nenhum a fórmula correcta do verbo que evoca o substantivo "privilégio" (este, sim, habitualmente bem escrito). É razoável o reparo do leitor e é justo o seu apelo a um mais frequente uso do dicionário — seja no computador, seja no papel.

• Números da sorte — É verdade aquilo que, a 27/11, descobriu o leitor Joaquim Neves: a chave ganhadora do Totoloto dessa semana não era a que, por lapso, apareceu no ecrã do "Última Hora". José Vítor Malheiros, editor do PÚBLICO Online (responsável por aquele serviço noticioso diário) admite que tenha havido uma "troca de ficheiro" e concorda que um erro deste tipo "pode ter consequências desagradáveis", pelo que já foram "tomadas medidas" no sentido de uma mais cuidada validação dos números. E passará a haver uma chamada de atenção, em rodapé, referindo que devem ser sempre consultadas também as listas oficiais de resultados. Problema semelhante já sucedeu, há meses, nas páginas do próprio PÚBLICO, tendo criado, pelo menos a um cidadão, momentâneas expectativas de riqueza que logo se frustraram. Compreende-se que as pessoas se habituem a confiar numa informação que o jornal, por sua livre iniciativa, decide dar-lhes. É prudente o aviso de que não se trata da lista oficial de resultados, mas mais importante será insistir, sempre e sempre, numa escrupulosa verificação do que se publica.