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Não Legitimar o Que É Ilegítimo
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 5 de Dezembro de 1999

Os leitores do PÚBLICO que seguem a coluna "Diz-se" puderam ler, na edição de sábado da passada semana (27/11), algumas frases alegadamente proferidas pelo ex-ministro Sousa Franco e transcritas da edição de véspera de "O Independente". É um procedimento aparentemente normal: pois aquela secção não vive da transcrição de ditos publicados noutros jornais? E quanto mais estranhos ou imprevisíveis, melhor...

Mas a história é mais complicada. Quem não tivesse acompanhado a controvérsia suscitada pelo "caso Sousa Franco / O Independente", ficaria a julgar que aquelas frases tinham sido mesmo proferidas pelo ex-ministro, e normalmente recolhidas por um jornalista, e candidamente dadas à estampa. Ficaria a julgar muito mal, pois não foi nada disso que se passou: de facto, as pretensas declarações de Sousa Franco resultaram de uma conversa privada que ele teve num restaurante, enquanto almoçava com um amigo, foram alegadamente ouvidas por estranhos que nada tinham a ver com o encontro e acabaram escarrapachadas (como citações literais) num jornal, em prosa assinada pela directora da publicação.

Assim sendo, não parece aceitável que se usem ou divulguem, no mesmo plano, ditos inequivocamente atribuíveis a certas pessoas e ditos "recolhidos" em circunstâncias tão indignas. Ao utilizarmos o produto de um acto ilegítimo, para mais sabendo como foi ilegítimo, tornamo-nos de algum modo cúmplices desse acto. Por muito que o condenemos no plano dos princípios.

O encadeamento de atropelos à ética e à deontologia faz deste "caso Sousa Franco / O Independente" exemplar a vários títulos, e merece comentários. Até porque, como é sabido, ele não se ficou pelas páginas do referido semanário e extravasou, de um modo ou de outro, para as páginas de mais jornais - entre eles, mesmo episodicamente, o PÚBLICO.

É inaceitável ouvir uma conversa privada entre dois cidadãos, sejam ou não figuras públicas, e transcrevê-la num jornal sem o seu consentimento. Elementares princípios de ética e de convivência social entre pessoas civilizadas e respeitadoras da dignidade do seu semelhante chegavam para o explicar; no caso, acrescem as obrigações deontológicas da actividade jornalística que, apesar de volta e meia torcidas por interpretações muito ciosas de um peculiar "interesse público", não podem nunca passar certos limites. Precisamente os que ferem a dignidade de uma pessoa.

É também inaceitável - embora revelador das misérias que alastram em algum do nosso espaço público - que um qualquer cidadão se abstenha de ir a determinado restaurante só porque ele "é muito frequentado por jornalistas" e, portanto, as hipóteses de invasão da privacidade são elevadas. Sabemos que é o que por vezes se passa, mas é vergonhoso que nos conformemos com essa espécie de dado adquirido que faz dos jornalistas bisbilhoteiros, alcoviteiros, abutres, tudo menos gente capaz de, ao menos, se sentar educadamente num restaurante sem espiar a conversa do lado. Convenhamos que nem é pedir muito.

É, ainda, eticamente reprovável que um jornalista se preste a servir de "altifalante" de um político que queira, alegadamente, difundir certas mensagens mas não o assuma com clareza. Vem isto a propósito da explicação, avançada por alguns, de que Sousa Franco seria tudo menos ingénuo e teria falado deliberadamente alto no restaurante, na expectativa de que as suas palavras fossem ouvidas por algum (directo ou interposto) jornalista, e portanto espalhadas. Diria o que queria dizer, mas ressalvaria sempre que estava a falar em privado. Mesmo que fosse essa a intenção, também aí o jornalista deveria abster-se de entrar cumplicemente nesse jogo de esconde-esconde que caracteriza muita da nossa "informação" política. Se o ex-ministro estava em conversa privada, pois privada ficaria a conversa; querendo-a pública, que o dissesse sem disfarce ou hipocrisia.

As cenas seguintes não destoaram deste mau começo. O modo como "O Independente" decidiu apresentar o resultado do seu trabalho é um engano para o consumidor: as frases bombásticas, entre aspas, que enchiam a primeira página, introduzidas apenas pelo antetítulo "Sousa Franco arrasa o Governo de António Guterres", faziam-nos pensar que lá dentro estava uma entrevista ou um texto de opinião do antigo governante. Mentira. Lá dentro estava a transcrição de algumas frases apanhadas numa conversa particular entre dois amigos, e não autorizadas pelo seu autor. O "embrulho" terá levado muita gente a comprar o jornal ao engano, o que sugere mais comércio sensacionalista do que jornalismo "corajoso".

Finalmente, e saindo agora para fora de portas de "O Independente", é de todo inaceitável que as frases recolhidas por métodos tão reprováveis sejam, depois, citadas, ou transcritas, ou analisadas, ou comentadas, como se a sua origem fosse normal. Se estamos de acordo que uma conversa privada foi ilegitimamente passada para o domínio público, só podemos fazer uma coisa quanto ao conteúdo concreto dessa conversa: ignorá-la, não tomar conhecimento, recusar dizer o que quer que seja que lhe dê algum estatuto. Se foi uma conversa privada, para mim ela nunca existiu. Não quero que me "ponham" naquele restaurante, numa mesa ao lado de Sousa Franco, a fazer a mesma triste figura que reprovo a outros. Se uso ou discuto aquelas frases, recolhidas de modo ilegítimo, estou a legitimar o processo que condeno.

No plano dos valores que aqui se propugnam, é irrelevante saber se "O Independente" mentiu ou não mentiu. Muito simplesmente, não interessa discutir se Sousa Franco disse isto ou aquilo, se é ou não verdade, se há ou não testemunhas. Recusamo-nos a entrar nesse jogo, ponto final.

Por quixotesco que pareça, este será o único gesto que, cá de longe, nos resta para afirmarmos os nossos princípios e a nossa coerência a defendê-los. É um gesto individual, que não vai mudar o mundo, mas um gesto de quem resiste à corrente, de quem não esquece valores só porque "já toda a gente leu" ou "toda a gente faz, quem sou eu para...?", um gesto de quem diz "por aí, não".

Se um grande manto de silêncio tivesse acolhido o baixo golpe de "O Independente", deixando-o a esbracejar sozinho no lodaçal em que quis meter-se, talvez as coisas fossem melhorando. Quem não tem escrúpulos talvez começasse a sentir que, afinal, "o crime não compensa". Assim, de algum modo vamos todos ajudando à festa, levados num jogo que não era o nosso - e quem acaba a rir-se, contente com o sucesso comercial e a publicidade gratuita, é "O Independente".