| Um Bom Jornal Exige Uma Boa Escrita Por JOAQUIM FIDALGO
 Domingo, 28 de Novembro
        de 1999
 Há uns meses, Mel Opotowski, provedor do leitor de um jornal
        norte-americano, intitulava assim a sua coluna semanal: "If you got no grammar, you
        got no credibility". Era uma veemente chamada de atenção para a necessidade de o
        seu jornal cuidar um pouco mais da escrita, no pressuposto de que também por aí passava
        o fortalecimento de uma relação de confiança com os leitores - o único capital de
        futuro.  Não foi por acaso, nem baseado apenas nas queixas recebidas, que esse provedor
        enunciou o problema de modo tão incisivo. É que, por aqueles dias (finais de 1998),
        tinham sido divulgados os resultados de um mega-inquérito a leitores, promovido pela
        Sociedade Americana de Editores de Jornais (ASNE) - destinado precisamente a tentar
        conhecer os motivos da progressiva perda de credibilidade da imprensa -, e algumas
        conclusões surpreenderam. Um dos factores mais referidos pelos consumidores de jornais
        para explicar como se sentiam defraudados e descrentes era, nem mais, a quantidade de
        "erros factuais, gramaticais e ortográficos" que lhes perturbavam a leitura
        quotidiana. Um terço dos inquiridos dizia encontrar falhas de gramática ou de ortografia
        no seu jornal mais do que uma vez por semana; 21 por cento garantiam deparar com eles
        "quase diariamente". E todos eram bem claros ao incluir estas deficiências no
        rol das explicações para o seu progressivo cepticismo relativamente ao que liam.  "Particularidades do mercado americano", comentarão alguns. Talvez não...
        Só para citar um exemplo: poucas semanas depois deste episódio, o provedor do jornal
        espanhol "La Vanguardia", Roger Jiménez, usava a sua coluna para divulgar os
        resultados do inquérito da ASNE e, logo a seguir, explicava como ela coincidia com a sua
        experiência concreta. Também no seu caso, o "duvidoso privilégio de
        liderança" na lista de queixas recebidas dos leitores durante todo o ano de 1998 ia
        para os erros factuais e para as falhas de gramática - o que lhe permitia concluir que
        "as preocupações, problemas e sensibilidades dos leitores, por grande que seja a
        distância física que os separa, têm um denominador comum".  Se alguma coisa significa a experiência das escassas semanas que o provedor do leitor
        do PÚBLICO leva no cargo, podemos juntar-nos aos americanos e aos espanhóis. Também no
        caso português, os erros e as deficiências de escrita são mais notados pelos leitores
        do que os jornalistas porventura julgariam. E, a avaliar por algumas reacções exaltadas
        que ao provedor vão chegando, também no caso português esses "pormenores"
        têm mais importância para uma boa relação leitor-jornal do que se imaginaria.  "O PÚBLICO está perdendo rapidamente qualidade. A continuar assim, deixará mais
        dia menos dia de ser o meu jornal diário". Este desabafo do leitor Carlos Teixeira -
        semelhante a vários outros recebidos ao longo destas semanas, e por motivos semelhantes -
        tem a ver, precisamente, com as falhas que detecta no jornal. Não percebe, por exemplo,
        como se pode dizer que o escritor alemão Günter Grass veio passar uns dias ao seu
        "refúgio alentejano" quando, duas linhas adiante, se explica que tem uma casa
        no bem algarvio concelho de Portimão. Não acredita que o jornalista quisesse dizer que
        Grass, ao fazer uma apresentação pública, tivesse falado para uma plateia "atenta
        e veneranda" - queria (ele próprio o confirmou) dizer "veneradora". Não
        aceita que se escreva que um navio "encalhou ao largo da costa" e depois se
        especifique que ele está encalhado "a menos de 100 metros da linha da costa, na zona
        de rebentamento das ondas".  São alguns exemplos recentes, a que infelizmente poderíamos juntar bastantes mais.
        Há casos que revelam óbvio desconhecimento (e não há nada de grave em não saber, o
        que é grave é não saber que não se sabe, ou não saber onde esclarecer as
        dúvidas...), há outros que mostram menor cuidado na sempre necessária revisão - ou
        re-leitura - dos textos. Necessária porquê? Não porque os jornalistas sejam todos uns
        ineptos no domínio de uma língua que é o instrumento básico da sua profissão; mesmo
        conhecendo-a bem, têm frequentemente que escrever em condições de rapidez, de
        agitação, de pressão, e é natural que escape uma concordância aqui, que falhe um
        verbo ali, que salte uma letra, que se confunda um vocábulo. O que já é menos natural
        é que, num serviço com as responsabilidades públicas de um jornal, esses erros
        caminhem, impassíveis, ao longo do processo produtivo, sem que ninguém os detecte e
        corrija, e saiam impressos em letra de forma.  Duas questões se podem colocar. Primeira: porque é que estas coisas acontecem (ou,
        melhor, como é que poderiam ser evitadas)? Segunda: estas coisas são assim tão
        importantes?  O PÚBLICO tem um conjunto de profissionais (os "copy desks") cuja tarefa é,
        precisamente, ler os textos antes da sua publicação, para ver se estão de acordo com as
        regras de estilo definidas no jornal, se não esquecem os princípios do bom jornalismo,
        se estão claros e fluentes - e, já agora, se vêm escritos com correcção. Mas, explica
        o director José Manuel Fernandes, "há muitos textos do jornal que não passam pelos
        'desks', sobretudo quando a hora de fecho se aproxima e a pressão é maior". Mesmo
        não passando pelos "desks", os textos são, em princípio, lidos por um editor.
        Mas também aqui a corrida contra o tempo e as urgências do fecho do jornal nem sempre
        propiciam a concentração necessária a este trabalho minucioso. Ou seja: muitos escritos
        acabam por escapar entre as malhas deste crivo teoricamente apertado. O coordenador dos
        "copy desks", José Imaginário, concorda que há no PÚBLICO "mais erros
        do que o desejável" e promete continuar a insistir para que os jornalistas tenham
        sempre presentes todas as normas do Livro de Estilo, bem como para que "não saia
        nenhum texto sem ter sido lido por uma segunda pessoa".  Quanto à importância destas matérias, cada um terá a sua sensibilidade. Do ponto de
        vista de um provedor do leitor, o que não pode é escamotear-se o facto de que muitos
        leitores se queixam das incorrecções de escrita e sentem que elas afectam a sua
        confiança no jornal. Estas matérias podem ser relevantes na medida em que prejudicam a
        imagem de qualidade e rigor de uma publicação e também na medida em que introduzem um
        desnecessário "ruído" na comunicação: falhas de gramática, erros
        ortográficos, gralhas, distraem-nos arreliadoramente da leitura e, portanto, diminuem a
        nossa disponibilidade para a substância da informação transmitida.  Mesmo que isto não seja suficiente para ferir de morte a credibilidade de um jornal,
        como sugeria o provedor americano, o certo é que a "belisca" por fracos
        motivos. E não havia necessidade.  |