.
Sobre os modos de dizer
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 31 de Outubro de 1999

"Sampaio não vê com bons olhos o regresso da discussão sobre despenalização do aborto. Em Belém há quem esteja preocupado com o facto de o PR ser posto perante a necessidade de promulgar um diploma que divide os portugueses em vésperas da sua reeleição".

Muita gente terá lido este trecho — saído na edição do PÚBLICO de 16/10/99, tanto na primeira página como na abertura da secção Política — sem lhe notar nada de especial. Dados recolhidos pela jornalista junto de "elementos do Palácio de Belém" sustentavam esta (plausível) interpretação sobre algum desconforto político de Jorge Sampaio face aos "timings" de nova discussão do fracturante tema do aborto. Pode concordar-se ou discordar-se, mas parece fazer sentido.

Contudo, o leitor Luis Azevedo descobriu, nesta formulação aparentemente banal, algo de estranho: aquele pedacinho em que se situa Sampaio nas "vésperas da sua reeleição". Diz, perspicaz, Luis Azevedo: "Que eu saiba, Jorge Sampaio ainda não anunciou a sua recandidatura, e ainda não se conhecem sequer quaisquer candidatos. Isso não impediu, contudo, o PÚBLICO de não só antecipar a candidatura de Jorge Sampaio, como também a sua reeleição. Não será um pouco exagerado?".

Parece, de facto, um pouco exagerado. E a jornalista São José Almeida, autora do trabalho, é a primeira a admiti-lo. No corpo do texto, esta afirmação nunca aparece de modo tão taxativo; pelo contrário, dá a correcta ideia de que as tais "fontes" de Belém estão preocupadas com a hipótese de o aborto voltar à praça pública "durante o próximo ano", no contexto de uma (obviamente esperada) recandidatura de Sampaio à Presidência da República. Mas na "chamada" da primeira página e na "entrada" do texto — aqueles pedacinhos iniciais, escritos com destaque, que tentam fazer uma síntese apelativa do que vem a seguir —, a afirmação é, efectivamente, exagerada. Problema recorrente nos jornais, este: seja nas "entradas", seja nos títulos, a necessidade de reduzir a pouquíssimas palavras um conjunto de informações por vezes complexas, e de o fazer de modo que capte a atenção, leva a formulações frequentemente simplistas e redutoras, dizendo "mais" do que o texto na verdade diz. Por isso é que é tão difícil fazer um bom título: curto, atraente, imaginativo, mas ao mesmo tempo rigoroso e circunscrito à substância do texto.

Esta questão levanta ainda outro problema: a facilidade com que os jornalistas (e muitos actores da cena pública) usam determinados termos já assumidos pela linguagem comum e que, aparentando corresponder a factos, correspondem na verdade a hipóteses que falta provar. Toda a gente fala da recandidatura de Jorge Sampaio a Belém, dando por consumada uma situação que, embora bastante expectável, não foi ainda confirmada pelo próprio. E toda a gente fala também da "reeleição" de Sampaio — ora confundindo "reeleição" com "recandidatura", ora dando como adquirido que ele voltará a ganhar o próximo escrutínio.

Como parece evidente, quem escreve num jornal tem responsabilidades acrescidas face àquilo que diz e não pode ser indiferente ao rigor das palavras, por muito que a linguagem comum lhes vá dando indevidos usos — ou sentidos. Não é correcto situar Sampaio — até por respeito democrático face a futuros concorrentes — nas "vésperas da sua reeleição"; quando muito, fale-se em "possível reeleição". Mesmo que a maioria dos leitores tenha percebido o que aquela frase do PÚBLICO "queria dizer", não se pode escamotear o que ela, literalmente, diz.

Que os "modos de dizer" são importantes de muitas e diversas formas, prova-o a reclamação do leitor Fernando Carvalho a propósito da rubrica "Miragem", publicada semanalmente na PÚBLICA e da responsabilidade do jornalista Adelino Gomes. Embora considere o autor da rubrica "uma referência do jornalismo português", o leitor diz-se "estupefacto" com "aquela forma de maltratar a nossa língua", pois é assim que entende uma opção de escrita traduzida em "um único período sem qualquer pontuação". Vai mais longe e, mostrando conhecer o Livro de Estilo do PÚBLICO, cita daí "recomendações importantes" como "o bom uso do português e o cumprimento das regras gramaticais".

Adelino Gomes lamenta "não ter sido capaz de comunicar" com este leitor mas explica-se: "Miragem significa, em sentido figurativo, ‘visão fantástica’, ‘engano dos sentidos’, ‘ilusão sedutora’. A ideia que lhe subjaz é o autor escolher uma fotografia da semana de uma forma inteiramente livre (isto é, fora das imposições de agenda e à margem dos consagrados e omnipresentes critérios de noticiabilidade). Um texto que saia (e possa ser lido) de um fôlego, como se na corrente do pensamento de quem olha e se deixa impressionar pela imagem fotográfica, será o mais adequado para atingir essa ‘visão fantástica’, essa ‘ilusão sedutora’, pensou o autor. O que se perderia em clareza imediata (não estamos perante uma notícia, uma entrevista, uma reportagem), ganhar-se-ia em originalidade, inventiva e criatividade, pensou o autor". Quanto à pontuação, o jornalista dá-lhe a devida importância, enquanto "facilitador da leitura", mas aponta a rubrica "Miragem" como "a excepção à regra" que todos ("eu incluído", sublinha) cumprem no jornal.

É, no subjectivo entendimento do provedor, aqui que bate o ponto relevante: estamos perante uma excepção à regra.

Mesmo sem esquecer o Livro de Estilo — que, além das recomendações sobre "o rigor da escrita", também sugere "a procura de formas inovadoras de noticiar, interpretar e editar a actualidade", ou até "a pesquisa imaginativa de códigos de comunicação adequados a novos hábitos e tempos de leitura" — não parece mal exercitar, em espaços adequados e devidamente sinalizados para o leitor, alguma criatividade, alguma ousadia, alguma provocação estética, alguma "liberdade poética". E ao primeiro momento da surpresa perante um corpo estranho (não foi o que sentimos com "O Memorial do Convento", de José Saramago?) podem seguir-se, eventualmente, níveis de leitura e de fruição bem mais fundos, mesmo se (ou até porque) mais exigentes para nós, pela perturbação que trazem às rotinas comunicativas. Afinal, talvez não seja abuso uma ou outra "ilha de poesia" no mar de necessária prosa de um jornal. Pois se também o mundo, a vida, a gente...

 

Contactos do provedor do leitor:

Cartas: Rua João de Barros, 265 — 4150-414 PORTO

Telefones: (22)6151000; (21)7501075

Fax: (22)6151099; (21)7587138

E-mail: provedor@publico.pt