Os Sarilhos do Ano 2000
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 24 de Outubro de
1999 Será que os jornalistas do PÚBLICO são leitores atentos do...
PÚBLICO? Será que as dezenas de profissionais empenhados em fazer todos os dias este
produto "também se informam ou lêem correctamente a informação que o próprio
jornal transmite?" Eis a curiosa interrogação dirigida ao provedor pelo leitor Luis
Ferreira, desejoso de que "os melhores fornecedores de informação" também
sejam bons "receptores de informação". Porque, diz avisadamente, "será
muitas vezes com base nessa recepção que se construirão outras notícias".
É este um tiro certeiro, diga-se. Até parece que o leitor já espreitou por algumas
reuniões de redacção do PÚBLICO e ouviu as frequentes críticas e auto-críticas pelo
facto de se insinuarem, aqui e ali, "espetos de pau" em "casa de
ferreiro" - ou seja, falta de informação dos profissionais da informação sobre o
que disse o seu próprio jornal em certos domínios. De uma coisa não há dúvida: um
jornalista, hoje em dia, tem (e tem que ter!) um enorme trabalho para estar sempre bem
informado e capaz de acorrer a múltiplas solicitações....
Vem isto a propósito das diversas queixas esta semana recebidas pelo provedor sobre o
modo como a PÚBLICA apresentou, no passado domingo, um variado "dossier"
alusivo às festas da passagem de ano de 1999 para 2000. "Um guia para comemorar a
passagem do milénio", titulava a revista. E vieram as críticas de quantos entendem
ter já sido suficientemente esclarecido - desde logo em artigos do próprio PÚBLICO... -
que a passagem do milénio só ocorre de 2000 para 2001, e não de 1999 para 2000.
"Alguns jornalistas continuam a lançar a confusão nos leitores", lamentou-se o
leitor Rui Moura. "Defenda-nos das falhas nesta matéria", pediu o leitor Jorge
Martins. "Gostaria de ver o PÚBLICO informar o seu público correctamente",
escreveu o leitor Luis Ferreira (já agora, talvez lhe sirva de consolo saber que vários
jornalistas "da casa" criticaram, na sua qualidade de também leitores, o modo
como a revista apresentou a questão).
Paulo Moura, editor da PÚBLICA, defende a oportunidade jornalística do tema,
invocando a quantidade de festejos que "estão a ser preparados pelo mundo
inteiro" para a noite de 31/12/99, e quase todos eles reivindicando-se como sendo
"do milénio". "Independentemente do facto de haver um consenso científico
sobre a data em que o milénio de facto termina - 31 de Dezembro de 2000 -, não podemos
ignorar o facto de todas estas comemorações estarem em preparação", diz Paulo
Moura, concluindo: "Se surgem comemorações espontâneas no final de 1999, isso
torna-se socialmente (e, portanto, jornalisticamente) muito mais relevante do que a
decisão da comunidade científica sobre qual a data correcta da celebração".
Lógica inquestionável, esta. Parece claro que o assunto é jornalisticamente actual e
interessante, e mais claro ainda que tantas comemorações chamadas "do
milénio" não podem ser ignoradas como tais. Mas a questão não é essa. Se bem
interpretamos, os leitores não contestam a relevância jornalística do tema nem a rica
informação que sobre ele foi dada na PÚBLICA; contestam, sim, o facto de os
jornalistas, ao abordarem o tema, terem dado como adquirido, e terem assumido isso mesmo
nos seus textos, que ocorre de facto em 31/12/99 "a passagem do milénio". Uma
coisa é noticiar que nessa data haverá comemorações auto-intituladas "do
milénio"; outra bem diferente é assumir, por sua própria pena, que nessa data muda
efectivamente o milénio.
É mais relevante a decisão da comunidade científica sobre esta polémica ou o facto
de o mundo todo estar a preparar a "festa do milénio" para o fim de 1999? Do
ponto de vista jornalístico, a questão não deve colocar-se nestes termos. Ambos os
pontos são relevantes - mais, não se excluem. É relevante, sem dúvida, e merece o
devido acompanhamento, tudo o que as pessoas estão a fazer à volta desta invulgar
passagem de ano, incluindo o celebrarem-na como se mudassem o século e o milénio. Mas,
para um jornal que se pretende rigoroso e atento às múltiplas "nuances" do
real, também é relevante esclarecer os leitores sobre o que a "comunidade
científica" estabeleceu.
Aliás, o próprio editor da PÚBLICA admite que "pode eventualmente ter
faltado" ao trabalho um pequeno texto evocando as controvérsias da data. A ter sido
feito, isso completaria a informação e não implicaria alterações de substância no
"dossier" - excepto em alguns títulos e afirmações mais categóricas.
O assunto é interessante, menos pela polémica em si e mais pelo que sugere de
reflexão sobre o papel de um jornal na sua relação com as pessoas e com a realidade. Ou
com as realidades. Porque é de duas realidades simultâneas que se trata aqui: de um
lado, o facto "matemático" (e aparentemente já pouco controverso) de que o
novo milénio só começa em 1 de Janeiro de 2001; de outro, o facto "social" de
que mais ou menos toda a gente, independentemente dos ditames da ciência, se prepara para
festejar a próxima passagem de ano como sendo a passagem para um novo milénio. E isto
não sucede apenas por interesses comerciais: em boa verdade, nenhum de nós é
insensível à carga simbólica e à força dramática que transporta a menção "ano
2000", fonte de tanta expectativa, de tanta história, de tanta superstição, enfim,
de uma auréola que decididamente falta a um número "banal" como 2001.
Se um jornal fosse um compêndio científico, tinha o caso resolvido: há que esperar
até 31/12/2000 e ignora-se soberanamente tudo o que as pessoas, na sua
"estupidez", queiram fazer em contrário. Se um jornal, em contrapartida, fosse
apenas a reprodução seguidista e acéfala de qualquer "vox populi", também
estava o assunto aviado: decide-se que o milénio muda agora, porque as pessoas o querem
agora, e ignora-se olimpicamente esse "pormenor" das datas que os cientistas, ou
os curiosos, ou os chatos, não deixam passar.
Ora estas duas realidades existem mesmo - e até não são nada incompatíveis. Muito
menos podem sê-lo para um jornal de referência, que tem obrigações de rigor e de
sentido pedagógico, que não reduz a complexidade do real a esquemas maniqueístas, que
respeita maiorias e minorias, que não esquece as suas responsabilidades na informação
do que acontece mas também na divulgação de conhecimentos e na formação de opiniões.
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