Uma Ponte com Dois Sentidos
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 3 de Outubro de
1999 Sejamos francos: há muito quem se mostre céptico, e por muito
respeitáveis razões, quanto à figura do provedor do leitor. Ou porque ele não tem real
poder para mudar o que quer que seja no jornal - apenas pode criticar, sugerir,
influenciar; ou porque, quando é também jornalista (embora com essa actividade
profissional suspensa, como é o caso), dificilmente escapará à tentação de justificar
os seus pares; ou porque só os ingénuos acreditam que uma instituição pública
poderosa, como é um jornal, vai agora pôr-se a "bater em si própria" com
genuína boa-fé e sincera vontade de melhorar as coisas a partir das opiniões dos
leitores; ou, enfim, porque, como sintetizava em tempos a ironia cáustica do escritor
espanhol M. Vasquez Montalbán (citado por Mário Mesquita no "Diário de
Notícias"), um provedor na imprensa é algo situado "a meio caminho entre Robin
dos Bosques e Madre Teresa de Calcutá", romanticamente destinado a "roubar o
poder à imprensa para dá-lo aos pobres". Condenado, portanto, à utopia - outros
dirão ao fracasso.
Não é este, como se imagina, o meu entendimento da função que, por convite da
Direcção do PÚBLICO, agora inicio. Correndo assumidamente o risco de alguma ingenuidade
- porventura aquela dose q.b. para quem, por regra, prefere tentar primeiro e só ajuizar
depois -, admito que um provedor do leitor pode ser útil, necessário e, vá lá,
minimamente eficaz. Digo "pode ser" e não "é" porque, como noutras
funções de cariz semelhante, dependentes da iniciativa voluntária de quem tem algum
poder e aceita vê-lo publicamente escrutinado, só o conteúdo concreto da intervenção
do provedor permitirá avaliar da sua pertinência ou real necessidade. As boas
intenções também contam, pois são elas que abrem caminho e dão a imprescindível
margem de liberdade; mas a prova final há-de vir da prática quotidiana no exercício do
cargo.
Um provedor, mesmo sendo "do leitor", pode ser útil e necessário tanto para
fora como para dentro de portas. Não é por acaso que, noutras paragens, esta figura
adopta a designação de "mediador". Ou seja, a ponte (de duplo sentido, como
devem ser todas as pontes) entre quem produz a informação e quem a recebe. E nunca é
demais recordar que o nome originário de onde nasceu a figura dos provedores -
"ombudsman" - designava, na antiga Suécia, aquele que varria a neve para
permitir a circulação das pessoas e a sua comunicação. Eis um programa aliciante, e ao
mesmo tempo um desafio ambicioso, este de o provedor se assumir o mais possível como
"um varredor das barreiras que se erguem entre os leitores e o jornal", para
evocar as palavras de Jorge Wemans, primeiro intérprete desta função no PÚBLICO.
Não quero cair na demagogia fácil de que "o leitor tem sempre razão". Nem
os leitores mereceriam essa desconsideração, por muito simpática que parecesse. Um
jornal de informação geral e expansão nacional como é o PÚBLICO, um jornal que
pretende ser referência para cidadãos exigentes e críticos, um jornal que procura
alargar o seu leque de leitores sem contudo perverter uma estratégia editorial coerente
nos seus fundamentos, é um produto/serviço complexo, dinâmico e diverso - como diversas
são as sensibilidades dos seus muitos leitores. Nem tudo agradará sempre a todos e nem
tudo será sempre bem entendido por todos, por mais que os responsáveis editoriais
procurem interpretar e actualizar, de modo criativo e não seguidista, os anseios daqueles
a quem se dirigem.
Mas, independentemente dos gostos de cada um (gostos que também se discutem,
claro...), independentemente da maior ou menor adesão a esta ou àquela fórmula
noticiosa concreta, os leitores deste jornal têm o direito de reclamar - pois isso lhes
foi, e é, prometido - uma informação rigorosa, séria, independente, fiável,
escrupulosamente respeitadora da dignidade de todas (todas!) as pessoas. Velar pelo
cumprimento deste "contrato público" estabelecido entre o jornal e os seus
leitores é competência maior do provedor, exigida decerto pelas duas partes
contratantes.
Os deveres éticos e deontológicos da profissão são, naturalmente, bem conhecidos
dos jornalistas do PÚBLICO. E bem conhecido é também o seu Livro de Estilo, onde tais
preceitos são desenvolvidos e aprofundados, de modo a que todos tenham no seu trabalho
quotidiano um guião de base que, recordando princípios colectivos e harmonizando
práticas individuais, contribua para um jornal coerente e homogéneo.
Porque assim é, teoricamente não seria necessária uma qualquer entidade
fiscalizadora do bom cumprimento dessas regras. No entanto, as condições concretas em
que diariamente se trabalha a informação, a pressão dos acontecimentos que se sucedem
em catadupa, a rapidez com que é preciso tomar decisões por vezes complexas, o simples
facto de os jornalistas serem pessoas, ajudam a compreender a ocorrência de lapsos ou
erros.
Por outro lado, e recordando de novo as palavras avisadas do primeiro provedor do
PÚBLICO (de quem procurarei ser um continuador pelo menos digno) , "a deontologia do
jornalista não é uma prática abstracta nem uma ciência exacta: é um campo de escolhas
e de juízos que não admite o desleixo e a leviandade, mas não expurga a possibilidade
do juízo erróneo". Daí, espero, a utilidade de alguém que, conhecendo bem os
constrangimentos naturais da produção diária de um jornal - e podendo contribuir para
que eles sejam mais conhecidos dos próprios leitores -, não esteja imerso neles mas,
pelo contrário, possa distanciadamente analisar o resultado final e ver se ele
corresponde aos níveis de exigência publicamente prometidos.
Compreender os porquês de um erro não significa, contudo, necessariamente
desculpá-lo - e, muito menos, desistir de trabalhar para que as condições concretas
propícias à sua repetição sejam, no possível, modificadas.
Justa ou injusta na sua generalização, está disseminada a ideia de que os
jornalistas e os jornais cultivam muito pouco a auto-crítica - porventura, dirão alguns,
na razão inversa com que se dedicam à crítica sistemática de personagens e
instituições alheias.
Abundam também as acusações de que uma instituição socialmente tão poderosa como
é um jornal escapa com facilidade a quaisquer mecanismos democráticos de controlo e,
tendo por norma a última palavra (escrita...) nas polémicas em que se vê envolvido,
adquire um estatuto próximo da impunidade. Poderia ironizar-se, como faz um provedor de
imprensa americano, que o jornal é a instituição mais aberta e transparente do mundo,
pois não só não esconde os seus erros como até os publica todos os dias... A
diferença da ironia para a realidade crua está, naturalmente, na distância entre
publicar os erros e assumi-los humildemente como tais.
Mesmo dando de barato que algumas destas suspeitas e acusações terão o seu quê de
exagero, regista-se a iniciativa da Direcção do PÚBLICO de, por sua livre vontade,
nomear alguém que precisamente vai procurar fazer esse controlo, vai tentar descobrir e
analisar as falhas, vai suscitar a reflexão interna, vai abrir uma nova porta às
queixas, comentários e sugestões dos leitores - vai, enfim, analisar a informação de
um ponto de vista "que se deseja exterior à lógica da redacção e aos seus
mecanismos de autojustificação".
Nem sempre o leitor terá razão, nem sempre terá razão o jornalista - e nem sempre
terá razão o provedor, que não adquiriu nenhum dom de infalibilidade pelo facto de
assumir este cargo. Dará as suas opiniões, fará os seus juízos, fundamentará os seus
pareceres, mas sabendo que serão também subjectivos e discutíveis. Procurará, no
entanto, fazê-lo sempre com independência, com imparcialidade, com seriedade, guiando-se
pelo único propósito que importa e que nos une a todos: o de contribuir para fazer do
PÚBLICO um jornal cada dia melhor.
Aos leitores, então, a palavra. |