Telenovela! Cravo! Canela!
Por Eduardo Cintra Torres
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001
Quem não tinha televisão em casa, em 1977,
juntava-se nos cafés. A Assembleia da República
parava e juntava-se ao povo: com Gabriela, Cravo e Canela
Para os portugueses a telenovela
começou, felizmente, com Gabriela, de Jorge Amado e
da TV Globo, e não com uma qualquer "soap opera"
"anglo-saxónica".
Em vez de um género
televisivo "aberto", muito limitado ou quase nulo
em temas da sociedade e todo feito em interiores, como são
as "soaps" americanas, chegou-nos em 1977 uma novela
com a rua, a política, a cidade e o campo, tipos sociais,
conflitos sociais, caracteres literários, humor, exteriores,
cheiros e sabores, ricos e pobres, religião e crenças,
liberdade e opressão, sabedoria popular e sabedoria
burguesa - tudo num género televisivo "fechado",
isto é, uma estória com princípio, meio
e fim.
E mais: bem realizado,
com um género de representação naturalista
televisivo até então desconhecido em Portugal,
com uma banda sonora de música popular brasileira de
excelente nível e com uma Sónia Braga gloriosa,
que mais certa não poderia estar naquele papel.
O Portugal que via televisão
parou para ver esta coisa nova que dava todos os dias à
hora do jantar: o novo hábito ou ritual de ver a telenovela
estabeleceu-se mais depressa do que qualquer outro nas últimas
décadas. Quem não tinha televisão em
casa juntava-se nos cafés ou tascas; e até as
pessoas importantes, como os deputados - a Assembleia da República!
-, interrompiam o trabalho pela nação para se
juntarem à multidão separada que assistia aos
episódios, aliás capítulos, e conhecia
e aprendia, também pela primeira vez, esse orgulho
quente que é o português falado no Brasil.
O navio torna-viagem trazia
agora outro néctar de além-Atlântico.
A Gabriela era o novo ouro, os novos diamantes, o novo pau-brasil,
o novo samba: o Brasil é uma vénus fértil,
chegava agora a vez de nos presentear com o melhor da sua
televisão.
Diz-se agora que a televisão
matou a obra de Jorge Amado. Mas isso não é
possível: nunca ninguém matou um livro. A televisão
transformou a obra de Jorge Amado. Roubou-lhe alguma coisa
para lhe acrescentar outra coisa. A crítica literária
e o tempo dirão qual o valor literário da obra
de Jorge Amado. O valor televisivo já o sabemos.
O mérito da telenovela
brasileira é da TV Globo, mas antes da TV Globo havia
um livro, um romance, que era "Gabriela, Cravo e Canela"
e sem esse livro não haveria a telenovela como a conhecemos.
Telenovela rima com Gabriela. A novela-mãe
foi o que foi, porque os tipos e a narrativa, as estórias
e as subestórias, a magia e a realidade, a vida e o
mundo, tudo estava na Gabriela, de Jorge Amado. Todas as telenovelas
que vieram a seguir, boas ou más, literárias
ou já libertas da influência dos livros, todas
deveriam dizer na ficha técnica: esta telenovela não
teria sido possível sem a existência de um livro
chamado "Gabriela, Cravo e Canela", escrito por
um senhor chamado Jorge. Amado. 

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