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  Toda a obra de Jorge Amado é um hino à vida, ao amor, à alegria e um libelo determinado contra os desígnios de Tânatos.
 

O romancista do Carnaval que é o Brasil
Por Ildásio Tavares
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001

Toda a obra de Jorge Amado é política. O que difere em cada tempo de sua obra é o posicionamento estético Não o posicionamento ético.

Quando Jorge Amado intitulou seu primeiro romance, em 1930, "O País do Carnaval" ele não imaginava que estava apondo o seu país um rótulo que seria mais tarde adotado por teóricos e antropólogos, não só para definir verdadeira e cientificamente a fisionomia do Brasil como para conceituar os processos antropológicos e simbólicos que conformam os fenômenos da carnavalização.

O universo literário de Jorge Amado é um universo carnavalizado em que os valores se apresentam invertidos e a opressão social é totalmente dessacralizada. No Carnaval, o bem-estar, a felicidade impera nem que seja por um instante de efémera fruição...

Ezra Pound disse uma vez que os poetas são antenas da raça. Poeta no seu sentido lato, Jorge foi capaz de expressar as angústias e sofrimentos do ser humano que em sua obra encontra a redenção, quer como vencedor provisório - o "bout de souffle" - como no caso de Teresa Batista, quer deificando-se após a morte, como Jesuino Galo Doido do livro "Pastores da Noite", ou virando estrela do céu, como Pedro Bala dos "Capitães de Areia", imitando os heróis gregos.

Quincas Berro-D'Água, protagonista da narrativa mais exemplar do carnaval, morre primeiro como burguês ao assumir a carapuça de rei dos malandros. Depois morre fisicamente apenas para manifestar sua repulsa final dos valores da burguesia, sair num saveiro e atirar-se ao mar.


Do maniqueísmo político...

Toda a obra de Jorge Amado é um hino à vida, ao amor, à alegria e um libelo determinado contra os desígnios de Tânatos.

Esses processos de inversão para consagrar a luta dos despossuídos vem dos primórdios da obra amadiana e a atravessa toda.

Há quem divida a sua obra em duas fases, uma engajada, de protesto social e outra picaresca. Contudo, em seus lineamentos básicos, toda a obra de Jorge Amado é engajada; é política. O que difere em cada tempo de sua obra é o posicionamento estético e não o posicionamento ético. Numa obra da maturidade, como o já citado Quincas Berro D'Água, talvez a sua obra prima, o repúdio ao código de valores da classe dominante é expresso com a mesma ênfase e, sem dúvida, com mais perfeição de linguagem e exata construção da paisagem humana da Bahia, numa narrativa relativamente curta. Muito pelo contrário. Os valores literários intrínsecos dos livros mais sectários estão até um certo ponto comprometidos com os aspectos panfletários e a estrutura cede lugar à ideologia, por vezes num maniqueísmo declarado em que os maus ficam à direita e os bons ficam à esquerda.

É preciso que se diga que Jorge Amado sempre dominou a escritura. É um escritor nato. Poucos sabem narrar com tanta mestria na atual literatura brasileira. Dessa maestria é que vem o seu sucesso. Enganam-se os que afirmam que seu êxito vem de sua temática. Não havia temática mais palpitante do que a luta de classes quando Jorge Amado estreou e se afirmou. Contudo ele só cresce verdadeiramente como escritor quando sabe manipular a realidade social e desmistificá-la pelo condão do cômico, arma maior da carnavalização. É tirando as máscaras de seus personagens ou afilando-lhes outras em caricatura que o escritor baiano consegue melhor expressar a sua visão de mundo, cinzelar a sua imensa e rica galera de tipos.

Quem quiser acompanhar a evolução deste escritor, desde que entrou no gabinete do editor Gastão Cruls, em 1930, com os originais de "O País do Carnaval" até "A Descoberta da América pelos Turcos", 1994 (Record), poderá ver seu gênio de narrador. Este último livro, que ele chamou de romancinho, é um primor de escritura. Partindo de um enredo inconsistente, Amado tece uma teia narrativa que prende, captura o leitor até o final. A magia da escritura amadiana age com um forte poder de sedução, atrai e puxa o leitor que só interrompe sua leitura a muito custo. É esta capacidade de deleitar que conduz o leitor e o traz de volta a outros livros de Jorge Amado.

Não se pense, todavia, que Jorge Amado é um escritor "naif" um simples contador de histórias lineares. As mais diversas técnicas narrativas aparecem em seus romances que não se limitam a desenvolver um enredo com princípio meio e fim . Ele assume diferentes posturas quanto ao foco narrativo que desempenha um papel visceral em "Tenda dos Milagres", romance em que a mudança do ponto de vista acoplada com a mudança do tempo cronológico ilumina todo o desenrolar da narrativa, cruzando a imagem atual de um bedel da Escola de Medicina endeusado por um pesquisador americano com sua imagem real, em seu tempo. Incríveis efeitos ficcionais são obtidos que foram aproveitados por Nelson Pereira dos Santos, nosso maior cineasta ao filmar o romance que ele declarou ser eminentemente cinematográfico.

... ao ensinar deleitando

Num romance tão precoce quanto "Capitães de Areia", Jorge Amado utiliza técnicas inovadoras para a época, entremeando a sua narrativa com cartas e notícias de jornal. Cartas, notícias, receitas, poemas, feitiços, declarações, tudo isso este autor lança mão para quebrar a linearidade da narrativa, numa demonstração de um sofisticado manuseio dialéctico entre temática e linguagem, entre forma e conteúdo.

Quaisquer tentativas de diminuir a sua obra vão ter que se esbater contra este binômio de um conteúdo humano com uma forma adequada. A distância que separa Jorge Amado dos comuns "best-seller" é que nestes a escritura está ao serviço de entreter enquanto que em Jorge Amado existe a proposta horaciana - ensinar deleitando - que está presente em toda boa literatura, afinal, um discurso ético.

A partir de "Gabriela Cravo e Canela", em 1955, a obra de Jorge Amado abandona o panfleto e assume o riso. Começa também uma galeria de notáveis personagens femininos. O escritor baiana é um escritor da mulher. Em sua obra, a mulher ganha liberdade, voz ativa, luta participa, cresce. A primeira vez, no Brasil, em que um marido traído mata sua mulher e é condenado é num júri em "Gabriela Cravo e Canela". O autor se dirige a um outro tipo de engajamento, mais amplo, não partidário. Em seguida, ele parte para ser o grande pintor da Bahia, universalizando a cidade. Carybé, Pierre Verger e muitos outros acorrem à Bahia trazidos pelos livros deste baiano que soube cantar a sua aldeia, e a fez universal, como queria Tolstoi. Em Jorge, a aldeia é circunstancial, mas os seres e as paixões são universais.


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