Do Brasil como mito do mundo
Por Eduardo Loureço
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001


A nossa geração descobriu o Brasil (literário) com Jorge Amado. É um dos nossos reflexos: está sempre "a descobrir o Brasil". O de Jorge Amado, mas também o de Graciliano Ramos e Lins do Rego eram então uma surpresa e um acontecimento de ordem mais que literária. A esse título, a geração anterior já os tinha descoberto, sobretudo Casais Monteiro. O que era novo nas primeiros anos da década de 40 é que eram eles, os brasileiros, que nos descobriam a nós. Quer dizer, nos influenciavam.

O movimento, ao mesmo tempo simples e complexo, que chamamos neo-realismo, se não nasceu com eles, não teria sido o que foi, em termos literários e não literários, sem essa espécie de insulação sofrida por essa nova literatura brasileira. E mais do que nenhuma, pela de Jorge Amado.

Obras como "Mar Morto", o "Capitães da Areia", "Jubiabá", antes das grandes sagas que serão "Terras do Sem Fim", e "São Jorge dos Ilhéus", ocuparam a cena cultural portuguesa dessa época, como nenhumas outras, excepto os romances de Erico Veríssimo. Mas só a de Jorge Amado criou um autêntico mito, o de uma literatura "engagé", num sentido diferente da europeia da mesma década.

Militante seria o termo adequado, mas, mesmo nessa época, seria redutor. Sob ou acima da intenção denunciadora directa e brutal do mundo dos fazendeiros, de que ele mesmo é filho, o que distingue a sua ficção é a exaltação lírica, o carácter sensual da sua visão do mundo, natureza e homem confundidos. Foi a sua, literatura popular por excelência, utópica em matéria de fins, extraordinária BD ética e sentimental da luta de classes na sociedade brasileira daquele tempo, ecoando uma certa tradição do século XIX, mas sem historicismo.

Não há na obra de Jorge Amado nostalgia, como em Lins do Rego, nem fundo pessimista, como em Graciliano. A violência social ou individualizada, que tão bem soube invocar, nada tem de "branca", calculada, e é subordinada ao instinto vital, ao impulso orgiástico de uma cultura de festa que já era uma segunda natureza no Brasil e nele se converteu em mitologia. Mais tarde, na ressaca de algum desencanto militante que foi menos dele do que do mundo em que pusera a sua confiança, foi essa mitologia solar, tão brasileira mas sobretudo tão baiana, que "Gabriela Cravo e Canela" exportará para o mundo inteiro. Jorge Amado não inventou o "país do Carnaval" mas deu-lhe um rosto irresistível gostosamente amoral, mas não cínico, como aquele que Sónia Braga levará aos ecrãs do mundo.

A violência não desapareceu nem do Brasil em geral, nem do seu mundo baiano. Por um pouco, morreria ouvindo os ecos dessa violência nas ruas da cidade que imortalizou. Mas, em fim de viagem, já não precisava defender-se dela. Todo esse povo que tão apaixonadamente trouxe para as páginas dos seus livros, de "Jubiabá" a "Quincas-Berro de Água", "Dona Flor" e "Gabriela" estava à sua volta, levando-o para o céu de fantasia e verdade de onde os trouxera.

Vence, 7 de Agosto


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