EDITORIAL
Nuno Pacheco
 
   
 
Mar e Terra
Por Nuno Pacheco
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001

Não era leitor de si próprio. Nem tal lhe era exigido. Mas o baiano Jorge Amado viveu dividido entre o mar e a terra, voando sobre todos os infinitos sem nunca descolar do mesmo chão que partilhava com aqueles que o entendiam e amavam, espelho das suas vidas e da sua linguagem. "Nós não somos isto ou aquilo, nós somos tudo: branco, negro, índio. É isto que faz a nossa singularidade e nos dá uma importância real", disse um dia o escritor - baiano de sangue, brasileiro de geografia, universal de alma. Transcendeu-se mesmo nos piores momentos, e esses ficarão no silêncio do que não escreveu ou do que escreveu mas não explicou: o fascínio pelo estalinismo, pelas glórias passageiras de um mundo que se queria melhor mas se construiu, sempre, sobre esqueletos anónimos. Ele deve ter percebido tudo isso, mas preferiu o silêncio à dilaceração pública dos seus próprios erros, partilhados com uma geração que viu o sol onde a luz cegava sem piedade. Quando o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, diz que "o Brasil perdeu um dos seus maiores intérpretes", descreve na perfeição o gesto de Jorge Amado: interpretar o Brasil, mais do que sonhá-lo, foi para ele reflectir as suas "cores, sons, perfumes, sabores e texturas"; as suas misérias e glórias, a sua coragem e cobardia, as suas falácias e as suas visões de futuro. No papel volúvel e encantador dos livros. Por isso as imagens de "Terras do Sem Fim", "Jubiabá", "Capitães da Areia" ou "Mar Morto" se sobreporão na história à escrita militante de "O Cavaleiro da Esperança" (panegírico dedicado ao líder do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes) ou aos três volumes de "Subterrâneos da Liberdade", espelho das contradições da luta clandestina subordinada ao vermelho-sangue (e enganador) de todos os comunismos. Inconformado com a sua velhice ("não traz sabedoria" mas apenas caducidade, disse ele ao poeta concretista Wally Salomão), Jorge Amado queria manter-se jovem contra o seu próprio corpo, para escrever o que a alma lhe ditasse. Não ambicionava prémios, mas tão-só acolher-se na concha protectora da Bahia-mãe, e nela sumir-se sem que tal fosse notado. Fundir-se com a terra e o mar, vizinhos-cúmplices num cenário de quietude onírica e transcendente. Entre os que sempre o consideraram um escritor menor e os que não passam um minuto sem zurzir os que nunca lhe atribuíram o Nobel, paira o fantasma de um partidarismo cego, carente de justiça e bom senso. Porque Jorge Amado ficará para a história como um escritor sem par na literatura brasileira contemporânea, com tudo o que isso significa de incompletude, mas também de imensidão.

 


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