Adeus, Capitão da
Areia
Por Carlos Câmara
Leme
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001
Lutou contra a morte até ao último
momento - como quase todos os heróis que criou. Mas
anteontem o seu coração parou. Para sempre,
fica uma das obras literárias mais fascinantes da
língua portuguesa. Como Tereza Batista, cansado da
guerra da vida, está agora discutir com deus - ele
que era Pai de Santo - o novo livro que vai escrever. Uma
nova tenda dos milagres com capitães de areia e muitas
gabrielas
A Baía parou. Anteontem, às 19h30,
hora de Brasília, o coração de Jorge
Amado também parou. Sentiu-se mal e, quando chegou
ao hospital, já estava a caminho do céu. No
obituário tinha 88 anos (completava 89 anos na próxima
sexta-feira, 10 de Agosto). Mas Jorge Amado viveu lado a lado
com cem anos de vida e de solidão.
A morte foi conhecida durante um concerto de
Caetano Veloso (que festejava os seus 59 anos). Caetano parou
de cantar e, com lágrimas nos olhos, comunicou abruptamente
que tinha "morrido a maior personalidade da Bahia".
Já não se ouviu mais a sua voz para interpretar
qualquer outra música. Saiu de cena com o tema que
compôs para o telenovela "Tieta", que durante
o dia de ontem os canais do mundo inteiro não deixaram
de pôr no ar.
Humildemente, como expressamente quis, o corpo
de Jorge Amado foi cremado ontem, e as cinzas foram lançadas
na mangueira da sua casa - uma imensa árvore, com a
qual tantas vezes falou porque a amava. A cidade, São
Salvador da Bahia, dividiu-se entre o 33 da Rua das Alaguinhas,
a casa do Rio Vermelho, os vários terreiros por onde
deitou búzios e as igrejas para orar (não importa
em que religião).
Foi uma espécie de canto do cisne. O
escritor acordou bem, mas sentiu-se mal ao final da tarde.
Levaram-no para o hospital mas o seu coração
(grande, muito grande em sentido literal e figurado) não
aguentou. Jorje Amado já tinha sido internado em 20
de Junho com uma crise de hiperglicémia. Durão,
recuperou, apesar dos relatórios médicos, na
altura, terem sido muito reservados. Mas venceu, como os seus
capitães da areia e com toda a esperança da
vida. E da liberdade.
Há, e vai continuar a haver, muita intelectualidade
brasileira que não lhe perdoa alguns dos apoios que
deu a António Carlos Magalhães, o último
dos jagunços dos jagunços do Brasil e que chegou
presidente do Senado. Como todos nós temos vários
períodos "negros" na nossa vida. Mas, para
todos os brasileiros, ele é o Amado Jorge.
Os portugueses leram-no de fio a pavio. Quando
"Gabriela, Cravo e Canela" entrou em nossa casa,
em 1977, até a Assembleia da República parava.
E nós que até mal percebíamos aquela
linguagem nordestina que nos chegava pela poderosa TV Globo.
Um mistério de dois países que repetem à
exaustão que são irmãos.
Outro mistério é por que razão
o romancista mais universal da língua portuguesa contemporânea
- a par de Fernando Pessoa - nunca ganhou o Prémio
Nobel da Literatura. O autor de "Mar Morto" esteve
durante anos e anos na lista da Academia Sueca e, quando José
Saramago ganhou, telefonou-lhe. À boa maneira baiana
bateu um bate-papo e tomou uma caipirinha à honra do
seu "amigo Zé". Se ficou magoado, isso já
nunca se saberá. Quando o PÚBLICO o tentou entrevistar
havia uma "matéria" de que ele não
queria falar - justamente, de prémios. E muito menos
do "nobel"...
Prémio para ele era a vida. Que
viveu intensamente. Como diz o narrador-Jorge-Amado-ele-mesmo,
no fim de um dos livros mais emblemáticos que escreveu,
"dentro dele uma alegria de primavera". O capitão
de areia (ou o imenso Quincas) que é Jorge Amado escreveu
sobre todas a nossas estações da vida. E da
morte. Como o mar. 

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