O Amante da Vida
Por Urbano Tavares Rodrigues
Quarta-feira, 8 de Junho de 2001
Como é que Portugal leu Amado?
Descoberto pelos neo-realistas portugueses, a persistência
do culto de Jorge Amado entre os leitores portugueses tem
a ver com a força inextinguível da sua imaginação
literária
Com José Lins do Rego, de "Menino
de Engenho", "Cacau" de Jorge Amado, inicia
o romance nordestino, que tanta repercussão teve
entre os neo-realistas portugueses do começo dos
anos 40.
Obras como "Jubiabá, "Mar
Morto" e o tão poético - como cru - "Capitães
de Areia" (que até apresenta similitudes com "Esteiros"
de Soeiro Pereira Gomes), marcam fortemente a geração
de Alves Redol, Mário Dionísio, Fernando Namora,
Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca. Aliás, toda
a juventude intelectual portuguesa adere apaixonadamente a
essa saga simultaneamente épica e lírica, carregada
de esperança num futuro socialista da Humanidade, condensada
na célebre trilogia "Terras do Sem Fim",
"São Jorge dos Ilhéus" e "Seara
Vermelha", onde o verismo, o humor sempre presente e
um bafo romântico e revolucionário modelam figuras
inesquecíveis de coronéis, jagunços e
capangas, aventureiros sem medo, pregadores iluminados e jovens
que acordam para a consciência de classe e os invios
caminhos da luta. Quem olvidou o coronel Horácio e
o capitão Juca Badaró?
O "far west" brasileiro
Uma linguagem oral, viva e pitoresca, cheia
de cor servia admiravelmente as cenas da multidão,
os diálogos populares, os rasgos heróicos e
burlescos, as cenas por vezes quase míticas de um Brasil
em trânsito do período arcaico-rural de apropriação
da terra e das monoculturas para a industrialização
- uma espécie de "far west" brasileiro a
cujas pequenas cidades aportavam jogadores de toda a ordem,
putas luxuosas ou rafeiras pelas quais os homens gastavam
todo o dinheiro ou despejavam os revólveres.
Numa fase posterior da sua já mais amadurecida
produção, agora menos veemente de ideais - porém
mais apurada na escrita e na qualidade subtil ou hilariante
do humor - Jorge Amado dá-nos aquelas que são,
talvez, do ponto de vista estético as suas maiores
criações: "Gabriela Cravo e Canela",
"Dona Flor e os seus Dois Maridos", "A Tenda
dos Milagres", "Teresa Batista Cansada da Guerra",
entre outros tesouros de graça, truculência,
afável ironia e acrisolado amor às virtudes
e aos defeitos do povo baiano, em que não faltam candomblés,
Mães e Pais de Santo, casas de meninas e a fala genuína
da rua, os amores mais sensuais e mimosos, por vezes de morte
ou de feitiço.
Nessas páginas, como as de "Quincas
Berro D'Água" nas de "Tieta do Agreste",
agita-se uma tumultuosa variedade de tipos humanos do Nordeste
em que convizinham as mulatas tentadoras, os "turcos"
ciumentos e hábeis no negócio, os janotas de
cidade, os matadores empedernidos que um sorriso às
vezes comove.
Escritor universal pela amplitude da sua visão
e precisamente pelo enraizamento visceral da sua obra, traduzida
e aplaudida em todo o mundo, Jorge Amado não chegou
a ter o Prémio Nobel, que, a muitos títulos,
merecia. Era um incansável cantor dos encantos e das
palavras macias e até dos ardis da mulher, dos seus
meneios, do rebolar das ancas. Dizia-se o mais preto dos brancos
da Bahia.
Ao afastar-se da militância e do ardor
combativo da sua juventude (chegou a escrever "O Cavaleiro
da Esperança" sobre a figura do dirigente comunista
Luís Carlos Prestes), Jorge Amado não perdeu,
contudo, o sentido de solidariedade social nem se afastou
dos amigos de esquerda que tinha feito no Brasil e por todo
o Mundo.
O sensual espectáculo da Bahia
Se foi Jorge Amado o escritor brasileiro que
mais leitores e leitoras apaixonadas conseguiu em Portugal,
também é certo que Graciliano Ramos - o autor
de "Vidas Secas" e de "Memórias do Cárcere"
- penetrou muito fundo nas camadas intelectuais, que nele
apreciavam o estilista depurado e o fino observador das consciências
e do fluxo da vida. Lins do Rego ficou confinado à
esfera universitária e pouco mais.
Mas Jorge Amado não seduziu apenas os
romancistas e os jovens progressistas, a quem o seu quase
fantástico Nordeste encantava bem como o sensual espectáculo
da Bahia sempre em festa ou em chaga. A sua influência
estendeu-se fortemente a Cabo Verde (Gabriel Mariano foi,
inicialmente, seu discípulo), a Angola e a outros países
africanos de língua portuguesa, que também conheceram
e seguiram o nosso neo-realismo.
Se quisermos falar num realismo mágico
brasileiro - que antecipa as grandes obras de Juan Rulfo e
Gabriel García Márquez - teremos então
de pensar em José Cândido de Carvalho e no seu
"O Coronel e o Labisomen". Mas é facto que
há, tanto em "Terras do Sem Fim" como em
"Dona Flor e o seus Dois Maridos" (ficções
tão diversas na forma e na estrutura) um real tão
excessivo, ou uma fantasia tão livre, que de algum
modo nessas suas criações se descortinam sementes
do milagre hispano-americano dos anos 60, patente em Pedro
Páramo e no mundo de fantasmas e assombros de Vargas
Llosa, de Manuel Scorza ou de Roa Bastos - onde não
há linha divisória entre vivos e mortos e o
tempo narrativo se distende ou se contrai ao bel prazer do
senhor da escrita.
A persistência do culto de Jorge Amado
entre os leitores portugueses, que só talvez nas duas
últimas décadas tenha declinado, tem a ver com
a força inextinguível da sua imaginação
literária e com o humor com que soube renovar o seu
exotismo.
Curiosamente, creio que no Brasil o fulgor
da sua literatura se apagou mais depressa. Mas cuido que se
trata de efémeras variações de gosto
e das novas solicitações da massa dos leitores,
mais voltados para a cultura citadina dos Estados-Unidos.
Os romances de Jorge Amado, com o seu
tumultuar de paixões violentas, a sua margem de ironia
e voluptosidade, a sua arte de comover e fazer rir vão
ficar entre as obras perenes nascidas no século findo.
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