COMENTÁRIO
Adelino Gomes
 



Com esta vitória e com os votos que Xavier do Amaral lhes oferece, os dirigentes da Fretilin enfrentam um dilema crucial: formar um governo e escrever uma Constituição monocolores; ou procurar dentro e fora das fileiras do partido os mais bem posicionados entre os timorenses para as tarefas da governação, assumindo ao mesmo tempo no parlamento uma postura que privilegie o consenso.

A força da bandeira e os desafios da vitória
Sexta-feira, 07 de Setembro de 2001


1. A vitória da Fretilin representou a vitória dos que lutaram, morreram e resistiram à ocupação indonésia. Mais do que os outros 15 partidos, a Fretilin representou a rebeldia do povo de metade de uma pequena ilha invadida pelo exército do quarto país mais populoso do mundo. Foi a Fretilin que organizou a luta armada contra o invasor. Foram os dirigentes da Fretilin os primeiros resistentes e as primeiras vítimas da ocupação. Foram a Fretilin, os seus militantes e simpatizantes (ainda outros admitiam as boas intenções do invasor) quem conheceu o que era a guerra, a morte, a tortura, a fome. Foi a Fretilin quem suportou quase sozinha a sangrenta fase inicial da ocupação. Ao votarem na Fretilin, os timorenses homenagearam um partido, um hino e uma bandeira que nunca desertaram. Mesmo quando a indiferença do mundo lhes acenava com o caixote do lixo onde jazem esquecidas e inúteis histórias de luta contra a injustiça, sonhos de independência, utopias de liberdade.

2. Ontem em Díli, Mari Alkatiri disse ao PÚBLICO que "se por alguma razão os outros partidos acabarem, a Fretilin divide-se em duas ou três para garantir o multipartidarismo e a democracia". A ironia sarcástica do novo homem forte de Díli é desnecessária porque a realidade já se encarrega de a traduzir: o que são o PD e a ASDT se não as diferentes divisões da mesma família independentista, cada um à sua maneira? A ASDT representando a velha guarda rural, acantonada nas suas posições de clã , confusa mas "maubere", e à qual Xavier do Amaral se acolheu, terminada a deriva indonésia; o PD enquanto símbolo da nova geração, urbana e académica, a qual, na esteira do "aggiornamento" ideológico de Xanana, precursor da adesão aos ideais da luta independentista dos diferentes sectores da sociedade, levou o facho da luta às universidades de Bali e Java e às embaixadas estrangeiras em Jacarta.

3. Com esta vitória e com os votos que Xavier do Amaral lhes oferece, os dirigentes da Fretilin enfrentam um dilema crucial: formar um governo e escrever uma Constituição monocolores; ou procurar dentro e fora das fileiras do partido os mais bem posicionados entre os timorenses para as tarefas da governação, assumindo ao mesmo tempo no parlamento uma postura que privilegie o consenso. A primeira escolha levará aos mares de Timor maus prenúncios de um futuro político tendencialmente ditatorial. A segunda preservará à partida a unidade na diversidade e garantirá uma lei fundamental em que se exprimirão, o mais possível, e sem descaracterizar a vontade expressa pelo voto, as diferentes linhas de força da complexa sociedade timorense. Trata-se de um desafio que esta mesma liderança conhece do passado clandestino. E que resolveu da forma mais acertada, ao aceitar a despartidarização das Falintil e ao partilhar a direcção da luta de resistência com outros partidos e sectores da sociedade civil. Como José Ramos-Horta dizia no momento da proclamação oficial dos resultados, um convite ao dirigente derrotado da UDT, João Carrascalão, para integrar o executivo constituiria um sinal inequívoco dos intuitos de moderação e abrangência dos novos homens fortes de Timor.

4. Era claro, desde há muito, que a comunidade internacional preferia uma vitória dos partidos mais moderados. Xanana Gusmão e a Igreja esforçaram-se por fazer chegar a mesma mensagem aos timorenses, indicando-lhes como alternativas aconselháveis o PD, que agrupa os jovens da resistência clandestina desarmada, e o PSD, do antigo governador pró-indonésio Mário Carrascalão. A vontade popular representada nos votos democraticamente expressos não lhes satisfez o desejo, mas situou estes dois partidos nos lugares imediatamente a seguir à Fretilin. A Igreja continuará a ser a mais forte das instituições timorenses. Xanana vai ser, se resistir a uma certa tentação demissionista que por vezes o assalta, o primeiro Presidente da República de Timor Lorosae. Como Mário Soares costumava dizer nos primeiros anos da democracia portuguesa, o povo, na sua sabedoria, gosta de pôr os ovos em mais do que uma cesta.

 

 

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