Intervenções na Toxicodependência
Por Jorge Negreiros*
Segunda-feira, 1 de Outubro de 2001


As dificuldades em suster o aumento do consumo de drogas em diferentes pontos do globo, tem conduzido, um pouco por toda a parte, a um questionamento global das medidas destinadas a controlar este grave problema com que as sociedades actuais se confrontam. Discutem-se estratégias, técnicas específicas, modelos e políticas de intervenção. O início deste século parece, com efeito, caracterizar-se pela procura de soluções para lidar com o problema do abuso de drogas e da toxicodependência que se mostrem mais eficazes do que as que foram ensaiadas no passado.

Simultaneamente, alguns princípios orientadores das intervenções nesta área têm vindo a suscitar uma aceitação crescente, nomeadamente na sociedade portuguesa. Um dos mais prevalecentes consiste em considerar que não existem panaceias ou soluções simples para resolver um problema complexo como é, indiscutivelmente, a toxicodependência. Para surtirem efeito, as intervenções devem convocar a colaboração de múltiplas entidades, organizar-se segundo níveis de intervenção distintos, apoiar-se em saberes multidisciplinares, basear-se em estratégias orientadas quer para a redução da oferta quer para a redução da procura.

Dir-se-ia que os sucessivos fracassos que esta área testemunhou no passado terão impulsionado a emergência de posições mais realistas e pragmáticas, agora despojadas de uma certa arrogância abandonado que foi o mito segundo o qual seria possível erradicar o consumo de drogas em sociedades fortemente dominadas pelo seu uso.

Outro traço comum a estas alterações, traduz-se no que poderíamos designar pelo primado do indivíduo em relação à substância/droga, uma tendência que atravessa os diferentes domínios da intervenção nas toxicodependências.

Comecemos pela prevenção. Evitar que o jovem trilhe os caminhos que o podem conduzir à experimentação, ao consumo regular e, por fim, à dependência da(s) droga(s) representa uma prioridade da intervenção muitas vezes proclamada nesta área. Para que tal aconteça não basta, no entanto, diabolizar as drogas, realçar quanto são prejudiciais para o indivíduo ou a sociedade. Pelo contrário, o recurso a tácticas meramente informativas ou geradoras de medo, pode mesmo suscitar a curiosidade do jovem pelas drogas, precipitando a experimentação. Em suma, ao falar das drogas podemos estar a incentivar o seu consumo.

Em vez disso, as abordagens de prevenção procuram, cada vez mais, ajudar o jovem a compreender-se numa sociedade consumidora de drogas, propiciando condições para que possa explorar livremente as suas atitudes e experiências, aumentando a sua responsabilização no que se refere às incontáveis decisões que terá de tomar ao longo da vida. O foco da intervenção desloca-se da droga para o potencial consumidor.

Na área do tratamento assistimos a uma evolução semelhante. A começar pelas próprias condições susceptíveis de desencadear mudanças positivas em relação ao problema do indivíduo com as drogas. Acreditou-se, durante muito tempo, que, para serem eficazes, as abordagens de tratamento deveriam recorrer a tácticas agressivas e hostis, organizarem-se como uma espécie de "terapia de ataque", considerada por muitos como o único meio de neutralizar os poderosos "mecanismos de defesa" que caracterizariam as pessoas dependentes de drogas.

À semelhança do que se verificou no domínio da prevenção, a ineficácia associada à utilização destas abordagens deu lugar a filosofias de tratamento em que a responsabilidade em relação à mudança é deixada, em larga medida, ao livre arbítrio do próprio toxicodependente. Este é visto como alguém capaz de escolher, de exercer um controlo sobre os seus comportamentos. As finalidades das intervenções tornam-se igualmente mais flexíveis: abandonar os consumos de drogas deixa de ser a prioridade absoluta do tratamento; os objectivos do tratamento podem ser negociados em função das necessidades e das características que o problema assume em cada caso particular.

A obsessão em extirpar a origem de todos os problemas (a droga), suaviza-se, torna-se menos intensa. Isso mesmo transparece, dum modo claro, nas intervenções baseadas no modelo da redução dos danos. O essencial da actuação envolve avaliar quais os tipos de efeitos que são provocados pelo consumo de drogas em termos dos benefícios ou malefícios para o consumidor e para a sociedade (e não na base de tais comportamentos poderem ser considerados moralmente aceitáveis ou condenáveis). Consequentemente, a ênfase é colocada não na supressão dos consumos mas em mitigar as suas consequências mais negativas.

Apesar de positivos, estes avanços dificilmente conduzirão a uma qualquer solução mágica que elimine por completo o abuso de drogas e as suas consequências mais nefastas. O consumo de drogas representará sempre um desafio para as sociedades actuais e vindouras, exigindo uma constante reformulação e adequação das estratégias às por vezes rápidas transformações que o próprio fenómeno do uso de substâncias psicoactivas assume em diferentes momentos da sua evolução. Implicará mesmo, em algumas situações, operar rupturas das quais possam emergir novos modos de actuação. Que se espera estejam baseados num espírito aberto e no respeito pela pessoa humana.

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação

*Universidade do Porto

 

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