Qualidade de Vida e Qualidade das Cidades
Quarta-feira, 3 de Outubro de 2001

Vítor Matias Ferreira

Catedrático de Sociologia do ISCTE, Director da revista CIDADES do Centro de Estudos Territoriais do ISCTE

A qualidade de vida nas cidades, sendo uma referência constante do discurso político, está também presente, ainda que com entendimentos distintos, nos desejos e aspirações dos utentes dessas cidades. Constitui, no entanto, algo de difícil avaliação, precisamente porque joga com uma dimensão propriamente qualitativa, tanto das cidades, enquanto tais, como das condições e modos de vida das pessoas que habitam, trabalham e circulam nessas mesmas cidades. Não parece possível, assim, discutir aquela dimensão qualitativa, sem procurar entender o que está a montante e a jusante do respectivo quotidiano urbano e que, em última análise, determina a maior ou menor qualidade de vida nas cidades.

Estão, assim, em jogo diversas questões: desde logo, a qualidade do espaço físico das cidades, da sua arquitectura, mas também a qualidade da sua habitação e, ao fim e ao cabo, do património edificado e do que vai sendo construído; a qualidade das suas vias e arruamentos, mas também a sua funcionalidade e adequação às necessidades de mobilidade urbana; a qualidade (e quantidade) das suas zonas verdes, quer à escala do bairro, quer a níveis mais amplos, da cidade e da região em que ela se situa; a qualidade dos espaços públicos, também eles de escalas muito diferenciadas e que, no seu conjunto, permitem avaliar a condição pública dessas mesmas cidades; a qualidade do ambiente na cidade, mas também o seu ambiente urbano, enquanto avaliação conjunta daquele ambiente com as questões anteriores. Enfim, falar da qualidade de vida nas cidades pressupõe uma avaliação cruzada do conjunto de várias qualidades, tanto do espaço urbano, como da vida individual e social dos utentes daquele espaço.

No caso das cidades portuguesas, é certo que, nos últimos quinze anos, muita coisa mudou, sendo contudo duvidoso que uma tal mudança tenha sempre seguido aquele objectivo de qualidade urbana. Nomeadamente, assistiu-se a uma generalizada e intensa ocupação do território, acentuando muitas das assimetrias territoriais existentes, uma vez que aquela ocupação, dita de urbanização, se processou, sobretudo, no litoral atlântico, mas também no extremo sul do país. Já o Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (1999) acentuava que essa ocupação territorial excedia em muito as respectivas necessidades demográficas, ao mesmo tempo que se constatava que a área prevista de expansão "urbana" do conjunto dos planos directores municipais do país, triplicava aquelas mesmas necessidades da população portuguesa! De resto, uma das conclusões gerais, sobre a qualidade de vida nas cidades portuguesas, é um tanto paradoxal: as cidades, propriamente ditas, viram diminuir a sua população residente, enquanto que o seu crescimento "administrativo" se processou, fundamentalmente, nas respectivas áreas periféricas que, como sabemos, na maioria dos casos, não são propriamente um modelo de qualidade de vida social e urbana.

Esta constatação é importante, na medida em que acaba por destacar que a maioria da população portuguesa não vive em "cidades", propriamente ditas, mas nos seus "dormitórios", na generalidade não equipados e, tantas vezes, sem as necessárias infra-estruturas. Isto não significa que a generalidade do parque habitacional das cidades não tenha determinados níveis de conforto, muito embora abundem situações, nomeadamente nas periferias de Lisboa e do Porto, que podemos considerar muito abaixo da "qualidade mínima garantida". Em todo o caso, a vida propriamente urbana, no que ela pressupõe de diversidade, de funcionalidade e de inovação, nos domínios económicos, sociais e culturais, não parece "habitar" aqueles mesmos aglomerados.

É certo que no período de quinze anos, muitas cidades resolveram (ou estão em vias de resolver) questões fundamentais ao seu funcionamento. É o caso exemplar do saneamento básico. Por outro lado, nunca se falou tanto de requalificação urbana como nos últimos anos, sinal mais que evidente que, até então, as cidades haviam estado relativamente abandonadas face ao ímpeto desenfreado das ditas urbanizações. Contudo, muitos destes processos de requalificação dirigem-se, sobretudo, ao "miolo" das cidades, na generalidade nos respectivos centros históricos, o que sendo importante, do ponto de vista da qualidade urbana, não chegam sequer a questionar a dualidade de situações atrás referida. E não só. Tendo em conta a relativa desertificação de população residente naqueles centros históricos, aqueles processos de melhoria da qualidade do espaço público das cidades tenderão a beneficiar, sobretudo, os utentes forasteiros, nomeadamente os turistas, o que não seria grave se, ao fim e ao cabo, todos nós pudéssemos ser turistas nas nossas e nas outras cidades...

Em todo o caso, estas intervenções de requalificação urbana inserem-se, em muitos casos, em anteriores processos de salvaguarda patrimonial e de identificação cultural das respectivas cidades. Quer ao nível autárquico, quer no quadro de movimentos associativos, quer em ambas as situações, simultaneamente, tem sido muito evidente a procura de "raízes" identitárias, de natureza histórica e cultural, das populações (originárias ou não) vivendo nas cidades. É certo que poderá jogar aqui um elemento de competitividade urbana ou mesmo de algum regionalismo um tanto passadista, mas o processo de identificação do país passa também pela identificação das pedras, dos símbolos e das gentes habitando e vivendo este país. E, a esse nível, muitas das cidades portuguesas (à semelhança do que se passa no contexto europeu) vão ao encontro, assim, do que também é qualidade de vida urbana.

Num registo diferente, sabemos que um indicador potente de avaliação da qualidade de vida nas cidades tem a ver com a mobilidade dos seus utentes. E, neste quadro, a situação em Portugal não parece estar longe da ruptura. Não será necessário invocar as situações mais drásticas, como são os espaços metropolitanos de Lisboa e do Porto, para se constatar que a generalidade das cidades portuguesas, mesmo as de pequena dimensão, se confronta com uma situação paradoxalmente absurda: quanto maior é o índice de motorização da população, menor é o índice da sua própria mobilidade, avaliado de acordo com as potencialidades daquela mesma motorização. Realmente, o círculo vicioso, que leva à progressiva e intensa utilização do transporte individual, ao mesmo tempo que se degrada, quando não se elimina, o transporte público, tem como contrapartida uma inexorável quebra na qualidade de vida urbana. O que significa que enquanto se considerar o transporte individual como transporte urbano, dificilmente se poderá melhorar a qualidade de vida nas cidades.

Como dissemos, muita coisa mudou, nos últimos anos, nas cidades portuguesas. Havia (e há ainda) um défice quantitativo ao nível básico das exigências urbanas que, em certa medida, tem vindo a ser superado. Por outro lado, melhoraram, sensivelmente, as condições de vida da população portuguesa. Contudo, diversas questões de fundo, que contrariam frontalmente aquelas melhorias, tendem a assumir uma inércia pesada, estruturalmente reactivas a mudanças qualitativas. Talvez que, ao fim e ao cabo, antes de nos interrogarmos sobre a qualidade de vida nas cidades portuguesas, tenhamos que averiguar, primeiro, a condição urbana e a qualidade social dessas mesmas cidades.

Destaque: Sabemos que um indicador potente de avaliação da qualidade de vida nas cidades tem a ver com a mobilidade dos seus utentes. E, neste quadro, a situação em Portugal não parece estar longe da ruptura

Legenda: Vitor Matias Ferreira: "Enquanto se considerar o transporte individual como transporte urbano, dificilmente se poderá melhorar a qualidade de vida nas cidades

 

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