Condenados Aos Subúrbios
Por Clara Viana
Terça-feira,
02 de Outubro de 2001
Em Portugal, pela mão do poder autárquico e com o beneplácito
de décadas de legislação permissiva, a qualidade de vida acabou
assimilada a mais betão
Quando descobriu que ia ter quatro faixas
de rodagem à porta da sua moradia, Pedro começou
por sentir-se defraudado. Sempre vira a casa como um refúgio
seguro à agressão a que se sentia submetido
quando se deslocava a Lisboa para trabalhar. Coisa que faz
todos os dias. Agora ia ter o ruído, os escapes e a
insegurança à porta. Protestou. Continua ainda
a protestar.
A mesma via atravessa, escassos quilómetros
mais à frente, um antigo bairro clandestino. Joana,
que sempre lá viveu, encara aquele futuro alcatrão
como um salto em frente. Um sinal de progresso que, segundo
acredita, contribuirá para diluir ainda mais os antigos
estigmas que rodeavam o seu bairro.
Para Pedro, as quatro faixas de rodagem
constituem uma ameaça. Para Joana equivalem a uma ascensão
social. De que é feita, pois, a qualidade de vida de
um lugar? No limite, ou no início, tudo depende do
lugar de onde se olha.
Em Portugal, pela mão do poder
autárquico e com o beneplácito de décadas
de legislação permissiva, a resposta está
à vista: a qualidade de vida acabou assimilada a mais
betão. Temos hoje cerca de cinco milhões de
casas e 3,1 milhões de edifícios para uma população
de 10,3 milhões de almas. "Existe uma casa para
cada dois portugueses; existem mais 1,3 milhões de
casas do que famílias. Até parece que somos
um país rico", desabafou o sociólogo Eduardo
Vilaça.
Tiago, que tem sete anos, encontrou a
sua fórmula para distinguir presidentes. Existe aquele
senhor que parece mandar em Portugal. Esse é o presidente.
Os outros, os que estão nas câmaras, passaram
a ter, para ele, um designativo comum: são os "presidentes
dos prédios".
Lisboa e o Porto continuam a perder habitantes,
enquanto os concelhos à sua volta vão engordando.
É o que se chama suburbanização, com
as sequelas que lhe são próprias. Por exemplo,
a existência de fortes movimentos pendulares em direcção
ao centro, já que o crescimento das actividades económicas
na periferia não tem vindo a acompanhar o seu forte
crescimento populacional.
A qualidade de vida, ou a falta dela,
mede-se também pelo tráfego caótico que
diariamente entope os acessos a Lisboa ou ao Porto. Segundo
dados do Instituto Nacional de Estatística, são
mais de 600 mil os que demandam diariamente a capital, perdendo,
em média, cerca de 76 minutos por dia nestas deslocações.
No Norte, a zona envolvente de Braga e a Área Metropolitana
do Porto são as mais fustigadas por estas deslocações,
cerca de 50 por cento das quais realizadas em automóvel.
Cidades onde viver e trabalhar
Na sua nova Carta de Atenas, o Conselho Europeu de Urbanistas
apontava, em 1998, o que parece ser óbvio. Que todo
este gasto de tempo e de energia, e acréscimo de poluição,
só serão travados também quando as cidades
voltarem a ser o que já foram antes: centros mistos,
lugares onde os cidadãos possam viver e trabalhar.
Considerou, a este respeito, a Urban Task Force, criada pelo
Governo de Londres para esboçar o caminho de um "renascimento
urbano", que as novas tecnologias de informação,
com as mudanças que introduziram no trabalho, poderão
ser um trampolim para que as cidades deixem de ser um inferno
diário e um deserto nocturno.
É o que chamou de "revolução
tecnológica, um dos três factores que, segundo
aquele grupo, criam hoje uma verdadeira oportunidade ao renascimento
urbano. Os outros dois serão a percepção
crescente, por parte dos cidadãos, de uma ameaça
ecológica, e a transformação social em
curso nas sociedades ocidentais, por força, sobretudo,
do aumento da esperança de vida e dos novos estilos
de trabalho.
Na década passada, a Agência
Europeia do Ambiente identificou o que considerou ser cinco
problemas fundamentais de 51 cidades europeias: a qualidade
do ar, o ruído, o tráfego, a qualidade da habitação
e o acesso a zonas verdes e espaços abertos, bem como
a extensão destes. Em várias cidades portuguesas,
os níveis de ozono têm disparado, o ruído
é potenciado por um parque automóvel envelhecido,
os limites de velocidade não são cumpridos,
os edifícios são desoladoramente iguais de norte
a sul do país e as zonas verdes continuam a ser apenas
pequenas manchas numa paisagem invadida pelo betão.
Estipulou o Conselho Europeu de Urbanistas:
"A existência de espaço entre as zonas construídas,
de paisagens protegidas e áreas verdes e de recreio
será de uma importância vital (...)" para
que as cidades se humanizem de novo. Aconselhou ainda aquele
organismo que não se urbanizem as áreas agrícolas
antes que estejam esgotados todos os terrenos não cultiváveis.
Por cá, fazem-se novas vias e urbanizações
em terrenos que são desafectados para o efeito da Reserva
Agrícola ou da Reserva Ecológica Nacional.
Quanto mais longe, melhor
Copenhaga está longe. Mas é um exemplo a reter:
apesar dos muitos protestos iniciais, as autoridades locais
começaram a vedar o centro da cidade ao tráfego
nos longíncuos anos 60. Hoje existem na cidade e nas
suas envolventes mais de 200 quilómetros de ciclovias.
Um efeito observado: os menores são ali mais autónomos
do que noutros países. Como o percurso para a escola
deixou de ser uma experiência de alto risco, são
muitas as crianças que o fazem sem a necessária
companhia dos pais.
À semelhança de outros
países, também em Portugal as cidades passaram
a ser sinónimo de menor qualidade de vida. Num estudo
publicado no ano passado, o "Diário de Notícias",
com base em 14 indicadores, chegou à conclusão
que dos 19 concelhos da Área Metropolitana de Lisboa,
os que apresentavam valores mais elevados de qualidade eram
precisamente os que se encontram mais distantes da capital
e onde subsistem ainda traços de ruralidade: Mafra
e Azambuja. No seu livro "Onde Viver em Portugal",
José Mendes, engenheiro, chegou um ano antes à
mesma conclusão: é no interior, mais do que
no litoral, que hoje se pode encontrar melhor qualidade de
vida.
O que quer dizer que a maior parte dos
portugueses lhe continua a virar costas. O litoral continua
a estar sobrecarregado de gente: só na Região
de Lisboa e Vale do Tejo estão concentrados 33 por
cento dos portugueses (3,5 milhões). Destes, 77 por
cento fixaram-se na envolvente mais próxima de Lisboa.
José Mendes atribuiu ao distrito
de Lisboa um segundo lugar no que respeita a condições
climatéricas. No "ranking" das 18 capitais
de distrito elaborado pela revista "Ideias e Negócios"
com base no seu livro, Lisboa aparece em 16º lugar. O
campeão da lista é Castelo Branco, apesar de
ter sido ali que José Mendes detectou os piores índices
no que toca à qualidade da água.
De que é feita, então,
a qualidade de vida dos lugares? Proclamou a Urban Task Force
que há um aspecto definitivo a este respeito: "As
pessoas têm que estar em primeiro lugar."
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