Acabou-se o Estado de Graça
Por Fernando Ruivo
Quinta-feira, 27 de Setembro de 2001
As primeiras eleições autárquicas
realizadas em regime democrático decorreram em 1976.
Para aqueles que se recordam, a afluência às
urnas foi enorme. Tal facto decorria obviamente do entusiasmo
das populações perante a democracia, mas também
muito do forte empenho dos eleitores no seu local e na construção
de autoridades mais próximas e eficazes. Pese embora
as potencialidades do modelo, várias razões
foram, no decurso dos 25 anos do poder local, conduzindo a
algum arrefecimento da adesão à política
local. O modelo encontra-se vivo, mas o estado de graça
acabou.
Parte da crise do modelo de representação
política descentralizada é fruto de causas que
lhe são estranhas. Lógicas externas derivadas
de factores como a transformação tecnológica,
a globalização, o acento na economia financeira,
a metropolização de extensas áreas urbanas
e a competição internacional entre as grandes
cidades têm vindo a conduzir a uma prática orientada
para a centralização. Aliadas à mentalidade
altamente centralizadora que subsiste na política nacional,
tais lógicas reflectiram-se aliás no verdadeiro
absurdo que foi a campanha para o referendo português
sobre a regionalização. Mas ao fenómeno
da desterritorialização contrapõe-se
o da reterritorialização. E este ensina-nos
que a produção do laço social é
feita localmente. Que as subjectividades e afectividades,
incluindo as políticas, se constroem a nível
local. Que a produção do sentido parte de uma
base territorial. E que os territórios, portanto, são
fundamentais para os exercícios da política
local, reafirmando-se assim a descentralização.
O que se deve pôr verdadeiramente
em causa são as razões internas dessa alguma
crise do modelo da descentralização. Elas terão
de ser sopesadas por cidadãos e eleitos locais, tendo
em vista um novo salto no exercício do poder local.
É que a crise tem também vindo a ser agravada
por determinados mecanismos do seu próprio funcionamento.
O mimetismo dos vícios centrais
é um deles. O centralismo local, por exemplo. E aqui,
tanto o cesarismo e personalismo de muitos líderes
locais, como o relacionamento entre freguesias e municípios,
entre outros, constituem apenas fragmentos desse mesmo retrato
localizado do centralismo.
O fechamento do acesso do cidadão
às autoridades locais é outro desses mecanismos.
Ele conduz a que o desempenho do eleito se possa vir a densificar
sobre um pequeno grupo de íntimos do poder (pessoas
e interesses), produzindo-se por esta via não raras
situações de autismo político e de défice
democrático local. Bem como a verdadeiros recordes
de manutenção no poder, a conhecida figura do
dinossauro local. A como que autonomização do
político face à sociedade civil que daqui decorre
contribui para que seja muito baixa a expectativa de influenciar
o poder por parte dos cidadãos.
A limitação dos mandatos
será pois um contramecanismo destinado a manter a frescura
do político e a garantir a abertura de tais acessos.
A recusa das ideias contidas no chamado "pacote autárquico
do bloco central" apresentado em inícios de 2001
(unipartidarização dos executivos, escolha pessoal
dos vereadores por parte do presidente e consequente enfraquecimento
da pluralidade de vozes intervenientes) poderá vir
a constituir um outro, ao impedir-se a definitiva blindagem
do sistema político local contida no projecto de reforma.
Acresce que a política portuguesa
ainda tem muito de segredo, sendo sobejamente entendida como
um assunto entre privados. A política local não
faz excepção, tendendo talvez até a enfatizar
esta característica.
Compreende-se deste modo que os autarcas
não apreciem formas públicas de apresentação
de reivindicações privilegiando canais individuais
de apresentação, tão típicos dos
notáveis dos labirintos locais. A publicitação
e debate amplo sobre as questões colectivas deve, no
entanto, ser localmente incrementada pelos grupos de cidadãos,
enquanto pedagogia para a participação e cidadania
local. Esta é, aliás, uma tendência que
se tem vindo a registar nos últimos anos, reflectindo
a passagem das exigências clientelares para as de camadas
mais vastas da população (ambiente, exclusão
social).
O exercício formal da política
tem-se encontrado ligado a uma enorme hipertrofia do voto.
Deste modo, a participação local é como
que codificada em torno do governo representativo local, sendo
consequentemente olhada pelos profissionais da política
como algo absolutamente prescindível ou, até,
potencialmente nefasto.
Compreende-se, assim, que a participação
local constitua um exercício extremamente salutar para
a democracia, provocando não só um melhor fluxo
comunicativo entre eleitores e eleitos, mas também
processos de decisão mais céleres e eficazes.
E que os governos locais devam ser exortados a incluir nos
seus programas e práticas determinados mecanismos de
mobilização para a participação,
cujo respeito possa ser devidamente fiscalizado pela cidadania
local.
Por esta forma se melhoraria a ligação
entre os cidadãos e o seu poder local, elaborando-se
uma plataforma para aqueles exercerem influência sobre
as próprias autoridades que elegeram. Uma tarefa tanto
mais importante já que a crise da representação
política da descentralização não
é senão uma das facetas da crise da representação
política em geral. Num país onde, há
alguns anos, recorde-se, estudos apontavam para o facto de
boa parte da população se encontrar numa situação
de máxima distância ao poder e pensar não
poder influenciar os destinos desse mesmo país.
Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra
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