Democratizar a Justiça
Por PEDRO MAGALHÃES*
Segunda-feira, 10 de Setembro de 2001



A justiça portuguesa não é democrática. O diagnóstico parece demasiado dramático, tendo em conta que a nossa justiça já não é manipulável para fins de repressão política e se ajustou a uma concepção moderna dos direitos cívicos e políticos. Contudo, a Constituição afirma que os tribunais têm a competência para administrar a justiça em nome do povo. Isto significa que o poder de julgar é meramente delegado. E a delegação bem sucedida ( ou seja, a prevalência dos interesses de quem delega) só se dá quando se cumprem duas condições: equidade no tratamento de todos os interesses pelo sistema judicial; e informação sobre o que fazem os agentes da justiça com o poder que lhes é delegado, para que os possamos responsabilizar. Nenhuma das condições é actualmente cumprida. Nos tribunais, quem tem mais recursos tende a sair, de uma maneira ou de outra, vitorioso. Os perdedores crónicos preferem, quando podem, manter-se à margem. E os cidadãos não dispõem de informação para avaliar nem de mecanismos para efectivar a responsabilização daqueles em quem delegam o poder de julgar. Sem equidade nem responsabilização, não há incentivos para tornar o sistema eficiente.

Como tornar a justiça mais equitativa? Curiosamente, alguns dos que mais se opõem a formas de privatização judicial não se preocupam com o facto de o apoio judiciário continuar a depender da cooperação de uma organização que representa os interesses de um conjunto de profissionais liberais, a Ordem dos Advogados. Tal como existe, o sistema coloca uma (inteiramente legitima) lógica de mercado e de interesses corporativos em contradição com a necessária lógica redistributiva e de serviço público. As desigualdades perante a justiça não serão reduzidas enquanto não for criada uma carreira de defensores públicos, cuja profissão consista em aconselhar e prestar apoio jurídico a quem não tem meios.

Interesses e direitos que importaria ver representados nos tribunais (dos consumidores, do ambiente, de todo o tipo de minorias ) entram pouco e cabem mal no sistema. Competiria ao Estado (tal como sucede nos Estados Unidos) adoptar regras de apoio a associações e firmas de defesa de interesses difusos. Faltam recursos financeiros para tudo isto? Claro que sim. Mas importaria estimar os meios até agora desperdiçados em oficiosas que não funcionam, assim como os que se poderiam obter se quem usa a litigância para cobrar dívidas suportasse custos razoáveis por esse serviço. E já agora, quem teme a febre das indemnizações deveria também estimar os custos sociais em que todos incorremos pela impunidade com que se movem muitos agentes económicos e o próprio Estado.

E a responsabilização? As empresas respondem perante os seus accionistas e o mercado. Os poderes públicos estão divididos para que se controlem mutuamente, e, nalguns casos, respondem eleitoralmente perante os cidadãos. Isto não se aplica ao poder judicial. O desempenho dos magistrados é, na prática, avaliado por colegas, solução que, apesar da competência e seriedade dos envolvidos, contém todos os incentivos errados. A sua responsabilização civil, objecto de uma resolução de 1998 do Conselho da Europa, não funciona em Portugal. Em França, criou-se uma comissão independente de exame da actuação dos magistrados. Em Espanha, os dois maiores partidos comprometeram-se a redesenhar o seu sistema retributivo e a subalternizar a antiguidade como critério de promoções. Mas em Portugal, as estatísticas da justiça não têm nomes nem rostos. Estudos de comportamento judicial, curiosamente, quase não existem. E à medida que no sector dos serviços avançam processos de certificação, a justiça continua imune à avaliação externa. Elaborando normas básicas de qualidade na prestação do serviço público de justiça, e com os necessários meios humanos e materiais, poderiam ser criados alguns tribunais de excelência, sujeitos depois a auditorias externas, avaliações de desempenho e da satisfação dos utentes. Isto criaria padrões a emular e mostraria a todos que, afinal, a justiça pode funcionar.

Alguns ainda temem que responsabilidades que não são suas lhes sejam injustamente imputadas. Outros vêm a plena responsabilização como uma suprema indignidade imposta a órgãos de soberania. Contudo, só assim se poderá separar o trigo do joio, e tornar evidentes as insustentáveis condições de trabalho enfrentadas por muitos. E não há pior indignidade do que aquela que já existe: segundo os estudos de opinião mais recentes sobre o tema, os tribunais já são a instituições na qual os portugueses menos confiam. Quando não se confia na aplicação efectiva da lei, que incentivos restam para que se formem empresas, para investir, ou para nos associarmos para a defesa dos nossos interesses? O resultado último da falta de confiança na justiça é a debilidade do desenvolvimento económico, da sociedade civil e da participação social e política, ou seja, da democracia. Democratize-se a justiça.

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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa


 

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