Ladrões de Proximidade
Por Luís Fernandes*
Sexta-feira, 21 de Setembro de 2001
Nos últimos anos, temos vindo a assistir
a uma verdadeira escalada discursiva sobre o aumento da criminalidade,
da violência e do sentimento de insegurança. Acontecimentos
largamente mediatizados, como ataques de bandos juvenis na Linha
de Cascais, assaltos às gasolineiras, o ataque da CREL,
os assaltos em montes alentejanos ou os tiroteios à porta
de discotecas, instauraram uma verdadeira guerra de argumentos
sobre a real dimensão da insegurança, sobre a
eficácia das polícias - e, no limite, sobre a
gestão política do país, de que a insegurança
fora, apressadamente, erigida em barómetro.
A insegurança urbana é,
em primeira instância, sentimento de insegurança:
ainda que parta de uma base factual, o discurso sobre a insegurança
remete-nos para o seu próprio imaginário, constituído
pela galeria dos perigos que habitam a urbe. Resistamos, pois,
à concepção coisista da insegurança:
ela não é uma "coisa", mas uma ressonância
emocional - remete para o medo, e este pertence à esfera
do psicológico e do subjectivo. Estamos perante um
fenómeno que vive na conjunção de práticas
sociais com o psicológico, que é a ressonância
daquelas.
O sentimento de insegurança pode
não dizer respeito a diferentes tipos de delitos ou
situações de perigo, mas referir-se apenas a
uma impressão geral, sensação vaga de
se estar em risco de vitimização - chamemos-lhe
simplesmente o medo à cidade. Ou seja, o sentimento
de insegurança é a sensação de
que se tem ladrões por perto - ladrões, digamos,
de proximidade. O povo queria um polícia em cada rua.
Em vez disso, tem um ladrão em cada esquina. A cidade,
enquanto campo de representações e objecto que
se presta a uma intensa construção de imagens,
é uma espécie de espaço aberto, onde
o predador dá caça às suas vítimas.
Não vale a pena discutir se esta imagem da cidade tem
fundamento ou se é torpe exagero: se as pessoas acreditam
que ela é assim, comportam-se no seu dia-a-dia como
se fosse. Evitarão certos lugares e horários,
trancar-se-ão em casa, reagirão desconfiadamente
nas mais banais interacções com estranhos. O
funcionamento mental de cada cidadão fica prisioneiro
da hipótese predatória, segundo a qual todo
o elemento estranho e todo o encontro imprevisto é
interpretado como ameaçador.
Como que a confirmar a validade da hipótese
predatória, um estudo actualmente em curso no Observatório
Permanente de Segurança, em colaboração
com o Comando Metropolitano da PSP do Porto, sobre os crimes
participados à polícia ao longo do ano 2000,
revela que, em 74% dos casos, não há pistas
sobre o suspeito nos crimes contra o património (furto
de/ou em veículo, edifício comercial, residência,
furto e roubo na rua, etc...). Se juntarmos a isto o facto
de só cerca de 5% dos crimes contra o património
irem a julgamento, percebe-se a desmobilização
que parece atingir hoje a polícia: ir a uma esquadra
participar um crime é uma experiência desoladora,
que nos põe em contacto com uma espécie de desânimo
aprendido e de sensação de impotência
policial. Uma queixa, em vez de suscitar acção
rápida ou movimentos tácticos reparadores da
ordem, suscita apenas uma série de comportamentos burocráticos
que incomodam largamente a vítima e não incomodam
minimamente o delinquente. Ou seja, nem vimos o delinquente
nem vemos a polícia. Nestas condições,
há terreno fértil para o crescimento do sentimento
de insegurança, o que tem consequências concretas
sobre a vida social: acredita-se num ladrão de proximidade,
que pode saltar a cada encontro aleatório no palco
predatório da cidade. Está ali à esquina,
talvez na vizinhança da minha casa, vigiando-lhe as
traseiras; está em cada um dos sítios que são
ditos da droga, da marginalidade, da errância, da deriva
juvenil, numa urbe retraída sobre o privado, em fuga
para dentro, desamparando os seus espaços antes de
convívio, desertificando a cena pública.
Ora, para ladrões de proximidade,
polícia de proximidade - essa figura que, para já,
está quase só nos discursos dos dirigentes.
A polícia de proximidade não é, como
quer o refrão simplista de muitas figuras político-partidárias,
mais polícia nem polícia por todo o lado, adivinhando
sagazmente o impossível: o sítio de um mau encontro,
o lugar de uma rixa, o acontecer súbito de um crime.
De que nos serve mais polícia, se continuar a funcionar
de um modo puramente burocrático? Uma polícia
de proximidade deverá devolver ao cidadão a
confiança na tranquilidade, porque conhece tanto os
residentes da área que patrulha, como muitos dos indivíduos
ou grupos que aí praticam actos cuja agressividade
minam a confiança e o vínculo social. Uma polícia
de proximidade restabelece a solidariedade num tecido social
fragilizado pela hipótese predatória, conjugando
esta faceta com uma real vocação pelo confronto
com a desordem e os comportamentos desviantes - só
que a sua concretização obriga a alterar profundamente
os estilos de policiamento, convertendo radicalmente o modelo
burocratizado de polícia.
*Observatório
Permanente de Segurança do Porto
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