Evasão Fiscal É Um Roubo Aos Contribuintes
Sábado, 15 de Setembro de 2001

Silva Lopes, economista, presidente do Conselho Económico e Social

Pela sua própria natureza, a evasão fiscal não se pode medir. É, todavia, praticamente certo que Portugal é um dos países da União Europeia em que ela é mais elevada. Além disso, apesar de a proporção das receitas fiscais em relação ao PIB ter aumentado satisfatoriamente até ao ano passado, há razões para crer que, em certas categorias de rendimentos, a fuga aos impostos tem vindo a subir.

O principal problema que se enfrenta no combate à evasão fiscal é o de a sociedade portuguesa a tolerar muito mais do que as de outros países europeus, onde o nível de consciência cívica é maior. Em regra, o cidadão português, que paga todos os seus impostos, só não pratica evasão porque não tem possibilidades de o fazer. E não condena com vigor a evasão dos outros, até porque, na maioria dos casos, não interioriza que o facto de uns contribuintes escaparem aos impostos implica que ele tem de pagar mais. Não se reconhece, em geral, que a evasão fiscal não é um roubo ao Estado; é um roubo aos contribuintes que não têm possibilidade de a praticar.

Esta tolerância para com os delitos de fuga aos impostos reflecte-se na lei e na forma como ela é aplicada em Portugal. Esses delitos, além de serem pouco sancionados pela opinião pública, estão, em regra, sujeitos a penas administrativas e judiciais bastantes leves. Apesar de na segunda metade da década de 1970 se ter introduzido na lei a pena de prisão para delitos de evasão especialmente graves, só uma vez essa pena foi aplicada e, mesmo assim, veio posteriormente a ser anulada. Não sei quantos são os países da Europa em que se encontram situações semelhantes. O que sei é que em muitos deles são frequentes os casos de prisão por delitos fiscais, envolvendo mesmo figuras com grande destaque público. Como em Portugal os riscos de detecção pelas autoridades dos delitos fiscais são baixos e como as penalidades aplicadas a esses delitos são reduzidas, não se pode esperar outra coisa que não seja o florescimento da evasão.

Não é fácil mudar a atitude da sociedade em relação à evasão fiscal, reveladora do fraco espírito cívico dos portugueses, que aliás se manifesta também em muitos outros domínios (condução perigosa, estacionamento proibido, baixas fraudulentas por doença, etc.). Mesmo assim, a comunicação social poderia dar contribuições úteis nesse domínio, embora não seja de esperar que o faça. É todavia possível, pelo menos, alterar várias disposições legais e práticas de administração fiscal, por forma a combater mais eficazmente a fuga aos impostos.

Expõem-se a seguir algumas alterações que são necessárias:

1) Transferir com mais frequência os encargos do ónus da prova para os contribuintes. Têm-se feito progressos importantes neste domínio, nomeadamente nas alterações da legislação tributária introduzidas há meses. É claro que o ideal seria que os contribuintes tenham o máximo de garantias perante o fisco. Mas quando o Estado está impedido, pela própria lei, de obter as provas necessárias para fundamentar as presunções de evasão fiscal e quando esta está tão generalizada, como entre nós, é necessário procurarem-se novos equilíbrios em matéria de ónus da prova. O excesso de garantias a favor dos potenciais delinquentes - que se encontram não só na fiscalidade, mas na criminalidade em geral - é bom para estes, mas é mau para a grande maioria dos outros membros da sociedade. É por isso que em Portugal não tem havido condenações penais sérias nem por delitos fiscais graves - como, por exemplo, os casos escandalosos das facturas falsas -, nem para outros crimes de "colarinho branco". Nesses delitos e crimes a impunidade é a regra.

2) Facilitar o acesso da administração fiscal às informações abrangidas pelo sigilo bancário. As alterações introduzidas há uns meses na legislação fiscal trouxeram alguns avanços modestos na possibilidade de o fisco ter acesso a informações cobertas pelo sigilo bancário. Elas ficaram, contudo, longe de ser suficientes. É para mim totalmente incompreensível que, entre nós, não se introduzam regras semelhantes às da grande maioria dos países da Europa. É como se nós estivéssemos a dar lições a esses países sobre a protecção dos direitos individuais. O extremo vigor com que empresários e banqueiros reagiram contra as últimas mudanças - altamente insuficientes - do regime do sigilo bancário e a sua insistência em que se recue para uma situação ainda mais insatisfatória do que a actual fazem suspeitar como são gigantescos os interesses na prática de evasão fiscal que se têm abrigado atrás do regime de sigilo bancário.

3) Alterar a legislação e as práticas legislativas na tributação das sociedades. É do conhecimento geral que numerosíssimas sociedades são estabelecidas em Portugal com o objectivo único ou primordial de fuga aos impostos. Não tenho conhecimentos suficientes para desenvolver adequadamente esta matéria, mas posso, ao menos, chamar a atenção para a necessidade de se tratar dos casos de constituição de sociedades sem actividade comercial, destinadas unicamente à detenção de activos de indivíduos ou famílias com objectivos puramente fiscais; e para a necessidade de fiscalizar mais apertadamente a dedução nas contas das sociedades de gastos dos sócios, seus familiares ou empregados que nada têm a ver com a actividade comercial dessas sociedades.

4) Desenvolver esforços no combate à evasão praticada através da saída de capitais e rendimentos para outros países e, nomeadamente, para "paraísos" fiscais. As formas de evasão deste tipo têm vindo a desenvolver-se a grande velocidade, em todo o mundo e também em Portugal. Combatê-las é tarefa extremamente difícil. No âmbito da União Europeia e da OCDE têm vindo a desenvolver-se trabalhos, com vista à cooperação internacional entre as autoridades fiscais dos diferentes países e à disciplina dos paraísos fiscais, a fim de combater essas formas de fuga aos impostos. A posição dos EUA, depois da entrada em funções da Administração Bush, não autoriza porém grandes esperanças. Os "paraísos" fiscais só existem porque os países do G8 o permitem e, pelos vistos, há poderosos interesses nesses países com capacidade para se oporem a que a situação se altere muito. Apesar de o problema não poder ser resolvido entre nós apenas à custa da legislação interna e da intervenção da administração fiscal portuguesa, há, mesmo assim, muito que pode ser feito, desde que haja especialistas para isso, com o fim de controlar e tributar a detenção de activos em Portugal por sociedades "off-shore" pertencentes a portugueses (de que um exemplo conhecido é o famoso iate de Vale e Azevedo), para travar a intensa actividade dos bancos e outros agentes na promoção de saídas de capital para o estrangeiro, na análise de preços de transferência (embora esta seja uma tarefa extremamente difícil).

Legenda: Não se reconhece, em geral, que a evasão fiscal não é um roubo ao Estado; é um roubo aos contribuintes que não têm possibilidade de a praticar

 

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