Gerir o Risco do Endividamento
Por Maria Manuel Leitão Marques e CatarinaFrade
Quarta-feira, 19 de Setembro de 2001


Em Portugal, à semelhança de outros países europeus e dos EUA, o crédito "democratizou-se", tornando-se uma componente normal do orçamento familiar, permitindo a muitas famílias antecipar uma percentagem variável dos seus rendimentos futuros.

Assume-se hoje que o crédito aos consumidores é uma forma de muitas pessoas (na sua maioria jovens) comprarem casa, automóvel, electrodomésticos ou computador, entre outras coisas mais. Crédito e endividamento deixaram de estar associados apenas ao exercício de uma actividade profissional ou de servir sobretudo para fazer face a circunstâncias excepcionais de falta de liquidez. Para responder a uma procura alargada e constante, a oferta automatizou os seus procedimentos, aumentando a acessibilidade e a rapidez da resposta.

Ao contrário do que se passou nos EUA ou em outros países europeus, em que a expansão do crédito foi lenta e ocorreu em diferentes fases do ciclo económico, em Portugal, ela processou-se muito rapidamente, numa fase de ciclo económico ascendente, num contexto de crescimento do rendimento em termos reais, de descida do desemprego e da taxa de juro, de liberalização do mercado financeiro e de um consequente aumento da concorrência entre as instituições que nele actuam.

De repente, os portugueses deixaram de correr atrás dos bancos à procura de um empréstimo, pelo qual tinham de esperar alguns meses e que cobriria, quando muito, uma parte limitada do custo da habitação, para serem os bancos a correr atrás deles, oferecendo financiamento a 100 por cento "just in time".

Habituados a medir o êxito pessoal muito mais pela capacidade de poupança do que pela de investimento de risco, os portugueses reagiram à abertura do crédito e à descida da taxa de juro de forma contraditória. Em privado aproveitaram-na, sobretudo para a compra de habitação e de equipamento. Em público, alguns portugueses não deixaram de lançar um olhar reprovador às despesas excessivas, como sempre do vizinho.

Pouco habituados e educados para falar sobre dinheiro e para o gerir, por razões políticas, culturais e religiosas, nem sempre souberam resistir ao abuso da antecipação de rendimentos e, sobretudo, perceber que essa antecipação tem um custo variável. Tendo vivido muitos anos debaixo de um excessivo e conservador proteccionismo público, no momento da inversão do ciclo, quando a taxa de juro recomeçou a subir, alguns chegaram a reclamar a intervenção do Estado, defendendo que este pagasse a diferença e assim socializasse o prejuízo! Outros responsabilizaram os bancos, não tanto pela falta de informação que eventualmente deveria ter sido prestada, mas apenas por terem emprestado a quem afinal se revelou não poder pagar, como se a actividade dos bancos não fosse isso mesmo: correr um risco.

Ao massificar-se o crédito, multiplicou-se automaticamente o número de devedores que se enganam nos seus cálculos, dos que se precipitam, voluntária ou involuntariamente, nas suas decisões ou daqueles a quem um azar vem surpreender. Mas todos estes devedores nunca deixaram de ser poucos relativamente ao conjunto dos que usufruem directamente dos benefícios do crédito, mesmo se desprezarmos os impactes positivos na dinamização da economia em geral.

Mesmo que, em termos percentuais, os casos de sobreendividamento sejam escassos, em termos pessoais e familiares são sempre situações bastante problemáticas, susceptíveis de romperem muito mais do que o equilíbrio económico-financeiro do indivíduo ou do seu agregado familiar. O sobreendividamento possui igualmente impactes sociais e consequências psicológicas que o tornam um fenómeno complexo e difícil de regular.

Por isso mesmo, o risco associado ao crédito implica uma ponderação cuidadosa e uma gestão equilibrada e partilhada pelas diferentes partes envolvidas.

A responsabilidade pertence, em primeiro lugar, às pessoas que beneficiam do crédito. O risco em que incorrem é directamente proporcional ao número e ao montante das dívidas que contraem. Os multiendividados representam a maioria dos incumpridores e, potencialmente, dos sobreendividados. A generalização e diversificação dos seguros de crédito ("safety credit") bem como a educação financeira dos consumidores são alguns dos instrumentos mais eficazes na prevenção da insolvência das famílias, como há muito perceberam outros países europeus e os EUA.

A responsabilidade cabe igualmente às instituições de crédito, sobretudo quando não cumprem as suas obrigações de prestar informação de uma forma clara e transparente de modo a permitir aos seus clientes fazer opções racionais e sustentadas. O reforço do dever de informação, a simulação de planos de pagamento com diferentes taxas de juro, a consulta regular de ficheiros de crédito, assim como a vinculação a códigos de conduta para regular as relações entre as instituições financeiras e os seus clientes são medidas que devem ser adoptadas como padrão pelo mercado financeiro.

A responsabilidade é ainda subsidiariamente das autoridades públicas, que devem favorecer todas as formas de prevenção ao alcance, regular a relação contratual para evitar situações abusivas e, por último, proporcionar instrumentos que permitam não eternizar as situações de sobreendividamento não recuperáveis, evitando, nomeadamente, a exclusão social e outros problemas graves que daí podem advir.

Observatório do Endividamento dos Consumidores

 

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