Na Ressaca da Euforia do Endividamento
Por Anabela Campos
Terça-feira, 18 de Setembro de 2001


Aparentemente, a situação está controlada. Se não houver crise no mercado imobiliário e o desemprego não disparar, a corrida ao crédito na década de noventa não terá consequências negativas.

A era do PS guterrista ficará indubitavelmente marcada pela subida em flecha do endividamento dos portugueses, que mergulharam de cabeça na democratização do acesso ao crédito, e entraram sem barreiras no mundo maravilhoso da euforia consumista. Um sonho que quase se transformou em pesadelo, dado que a partir de meados de 1999 a tendência de descida das taxas de juro inverteu-se e o grau de esforço associado ao serviço da dívida subiu acima dos 20 por cento. Em 2000 o endividamento das famílias assume-se como um problema de grande dimensão e começa a levantar-se a questão: estarão ou não os portugueses a viver acima das suas posses?

O momento da grande viragem dá-se em 1995, ano da chegada ao poder de António Guterres. Já que é, sobretudo, a partir de meados da década de noventa que começa a verdadeira corrida ao crédito, cujo expoente máximo é atingido em 1998 e 1999, quando as taxas de juro registam o seu mais baixo nível histórico. Um movimento que o governo socialista- que também apostou numa política orçamental expansionista - acabou por ver reverter em seu benefício, dado que a procura interna estimulava o crescimento económico e Portugal poderia assim cumprir as metas impostas por Bruxelas. Um "pecado" - o da política orçamental - que alguns economistas, alertando para os graves problemas que se levantam a uma nação endividada, não perdoam ao governo.

A fúria consumista dos portugueses, alimentada pelo enriquecimento provocado pela entrada no euro e pela eliminação de constrangimentos à oferta de crédito, aliada a uma política comercial agressiva das instituições bancárias, fez explodir o nível do endividamento dos portugueses. Em apenas uma década os saldos em dívida dos portugueses passaram de 19.6 por cento (1990) do rendimento disponível para 88,4 por cento (2000). As poupanças dos particulares, essas, viveram um processo inverso, recuando de 17,5 por cento do rendimento disponível em 1991 para 8,2 por cento em 1999. Em apenas dez anos o povo português desfez-se de décadas de tradição. Portugal deixou de ser um país de aforradores, para se assumir como um país de consumistas, ultrapassando mesmo em termos de percentagem de rendimento disponível cativo para o pagamento de dívidas a maioria dos seus parceiros comunitários.

O governo acordou para o problema em meados de 2000. Na altura, o ex-ministros das Finanças, Pina Moura, reconheceu em entrevista ao PÚBLICO que o governo falhou ao demorar tanto tempo a olhar para o assunto e aconselhou os portugueses a moderarem o endividamento. Era altura de arrepiar caminho. O ex-ministro admitiu que o governo e as instituições financeiras deviam ter actuado de uma forma mais pedagógica e preventiva. Os portugueses perceberam a mensagem. Tanto mais que o susto provocado pela subida das taxas de juro, obrigaria a uma maior moderação. E a própria banca acabou por reduzir a agressividade e a ser mais selectiva na concessão de crédito. Tanto assim foi, que em meados de 1999 o crescimento do crédito começa a desacelerar e a taxa da poupança a aumentar. Esta última aumentou de 8,2 por cento do rendimento disponível em 1999 para 8,8 por cento em 2000. Verifica-se também que o risco de incumprimento afinal não era tanto grande como se temia. O que não é muito espantoso, já que o crédito à habitação representa 75 por cento do crédito concedido, e, como se sabe, a casa, dada a sua importância na cultura portuguesa, é a última coisa que as famílias deixam de pagar.

Dados do Banco de Portugal (BP) revelam que o incumprimento no crédito a particulares medido em percentagem do crédito total concedido era de 2,1 por cento no final de 1999, baixando de 1,9 por cento um ano mais tarde.

Miguel Beleza, ex-governador do Banco de Portugal, admite que "não se pode afirmar com clareza se o endividamento é excessivo ou não", e sublinha que "para já não há sintomas de que isso esteja a acontecer". Uma das razões que o leva a afirmar que não há motivos para inquietações é o facto de os bancos portugueses continuarem a pagar o mesmo que os seus congéneres nos mercados interbancários internacionais. O ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, afirma também que neste momento o nível do crédito mal parado está controlado e não é preocupante. Miguel Beleza considera, no entanto, que se o crédito tivesse continuado com o crescimento galopante de 1998/90 poderia tornar-se dramático. "Mas o mercado acabou por reequilibrar a situação", acrescenta.

Em Portugal estão agora dar-se os primeiros passos na protecção dos consumidores ao nível do crédito e do endividamento. A DECO criou em 2000 o observatório de publicidade aos serviços financeiros, cujo objectivo é analisar e posteriormente denunciar os anúncios publicitários lesivos dos direitos dos consumidores. Paralelamente lançou também os gabinetes de apoio e acompanhamento ao endividado e sobreendividado. Gabinetes esses que apoiam os consumidores que pretendem recorrer ao crédito e acompanham os sobreendividados, ajudando-os a renegociar os créditos.

Na Universidade de Coimbra foi criado este ano o observatório do endividamento dos consumidores, cuja função é estudar a temática do ponto de vista científico e simultaneamente apresentar pareceres e sugestões.

 



   

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