A Necessidade e o Direito de Ser Ouvido
Por Jorge Palmeirim*
Sexta-feira, 5 de Outubro de 2001


"Todos têm o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender." Assim começa o artigo 66º da Constituição da República Portuguesa, que define ainda que incumbe ao Estado assegurar esse direito através da prevenção da poluição, do ordenamento do território, da conservação da natureza, etc.

Com tais garantias constitucionais, seria razoável assumir que os políticos democraticamente eleitos pelos cidadãos para se encarregarem da gestão dos interesses públicos fizessem tudo o que está ao seu alcance para defender a qualidade do ambiente. Mas a ideia de que esses gestores tomam sempre decisões que maximizem o benefício público está hoje muito longe da realidade. Grupos de interesses, em geral económicos, estão bem organizados para fazer prevalecer os seus interesses minoritários no processo decisório, frequentemente em detrimento da qualidade do ambiente, um bem público. De facto, quando existe um qualquer conflito entre o interesse ambiental público e o interesse privado é bem frequente ser este último a vencer.

A este nível o ponto mais fraco da nossa democracia (e de muitas outras) é o tão badalado financiamento privado dos partidos, claramente o pior inimigo dos interesses públicos. Por mais camadas de verniz que lhe apliquem, a realidade incontornável é que enquanto o financiamento dos partidos vier de forma directa ou indirecta de grupos de interesses, o processo decisório tenderá a beneficiá-los, mesmo à custa do interesse geral da sociedade. Se essa recompensa não fosse um objectivo de muitas contribuições partidárias, como poderíamos interpretar que empresas (ou seus donos) que vivem da venda de serviços ao Governo financiem simultaneamente as campanhas de vários partidos, de ideologias distintas?

Parece-nos assim claro que se o cidadão quer ver os seus interesses colectivos respeitados, tem de estar atento e ser participativo, fiscalizando e influenciando o processo decisório, tanto a nível nacional como regional e local. Esta participação, para além de contrapor as pressões de interesses privados sobre os decisores, também lhes transmite elementos essenciais para que possam levar a cabo um informado processo de tomada de decisão.

No entanto, há quem entenda que esta participação é incómoda e mesmo ilegítima. Afinal que direito têm os cidadãos de "incomodar" os gestores democraticamente eleitos? A nossa Constituição clarifica bem a situação ao explicitar que compete ao Estado "Assegurar o direito ao ambiente... com o envolvimento e participação dos cidadãos". Talvez constitua uma surpresa para alguns que a nossa Constituição seja explícita nestes aspectos, mas a realidade é que o direito à qualidade do ambiente e à participação são hoje pilares fundamentais do Mundo democrático.

Julgamos ser importante deixar claro que a participação pública que defendemos não tem como objectivo combater uma administração pública globalmente perversa. Tanto nos meios políticos, como na administração, não faltam aliados na defesa do interesse público. Um dos principais objectivos da participação é precisamente reforçar a posição destes, contrariando a dos que se vergam à pressão dos interesses individuais.

Apesar das vantagens do envolvimento do cidadão nos processos decisórios e do direito constitucional de intervir, o nível de participação pública em matérias ambientais (e noutras) é mínimo. A que se deverá esta passividade? Provavelmente não a desinteresse dos assuntos em causa, mas à ideia generalizada de que a participação é inútil pois só "os poderosos" conseguem influenciar os processos decisórios. O mais grave é que esta ideia corresponde em grande parte à realidade. Alguns elementos da nossa classe política e administrativa consideram-se parte de uma casta superior, que só tem de ouvir e prestar contas a outros elementos dessa casta. Esquecem que a sua única função é gerir os interesses dos cidadãos, e que são eles que lhes pagam os ordenados ao fim do mês.

Estamos num ciclo vicioso de alienação: o público participa pouco por sentir que a sua opinião não vai ser tomada em consideração, enquanto o decisor não se sente forçado a respeitar a opinião do público porque ele é pouco participativo e não se impõe. Para quebrar este afastamento entre o cidadão e o decisor, talvez o mais marcado na Europa, é necessário que os cidadãos ambientalmente mais preocupados exerçam os seus direitos de cidadania de forma determinada.

A forma mais directa de intervir na área ambiental é a ligação, como simples membro ou mesmo como activista, a uma associação de defesa do ambiente. A falta de tradição associativa da sociedade portuguesa faz com que estas instituições se batam continuamente com falta de sócios e de recursos financeiros e humanos. Apesar destas limitações, têm desempenhado um papel importante na defesa do ambiente em Portugal e no estímulo à participação cívica. É, em geral, mais fácil ao cidadão fazer-se ouvir através da associação com outros cidadãos com iguais preocupações. No entanto, há também muitas oportunidades para a participação independente.

Uma das formas mais eficazes de impor aos decisores o respeito dos interesses públicos é obrigando-os à divulgação da fundamentação das decisões. Qualquer decisão tem de ser fundamentada, e os despachos, pareceres e estudos que estão na sua base são obrigatoriamente do domínio público. A falta de transparência nos processos decisórios, quase regra entre nós, só favorece os grupos de interesses que se movimentam na sombra dos corredores da administração. Com uma simples carta, um cidadão pode quebrar esse perigoso sigilo, acedendo aos processos decisórios em que esteja interessado.

A nossa legislação, bem mais correcta que a prática, exige que a opinião do público seja ouvida como passo preparatório de alguns processos de decisão ambiental. É o caso dos processos de avaliação de impacto ambiental ou da promulgação de certos instrumentos de planeamento do território. São oportunidades de ouro para nos manifestarmos. É certo que em muitos casos esta auscultação pública é tratada como simples pró-forma irrelevante, em decisões que por vezes até já foram tomadas. Quando pareça que isso está a acontecer, o cidadão pode questionar a seriedade do processo, começando por obrigar à divulgação dos elementos que fundamentaram a decisão.

Uma genuína democracia participada na área ambiental não está ainda ao virar da esquina, acima de tudo porque implica uma forte alteração da atitude dos decisores e mesmo dos cidadãos. Mas a alternativa de continuar a ver o interesse ambiental comum a ser posto em causa por interesses individuais justifica o esforço para alterar essas atitudes. E a melhor forma de aprender e ensinar é praticando o exercício dos nossos direitos cívicos.

*Biólogo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, ex-presidente da Liga para a Protecção da Natureza

 

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