O Natal branco de Abel Ferrara
"R-Xmas" apresentado na secção
Un Certain Regard
Do nosso enviado Vasco Câmara,
em Cannes
Quinta-feira, 10 de Maio de 2001
Um conto natalício, branco, não de neve mas de cocaína,
pelo realizador de "The Bad Lieutenant".
É branco o Natal
para o americano Abel Ferrara. Mas não é só
por causa da neve.
Depois da récita infantil na escola da filha, do passeio
a cavalo em Central Park, da visita à árvore
de Natal do Rockfeller Center e das últimas compras,
ele e ela (nunca saberemos os nomes das personagens) deixam
a filha entregue à avó, vestem os blusões
de couro, entram na limousine e partem para o negócio.
É branco o Natal destes filhos de emigrantes porto-riquenhos.
Mas não é por causa da neve, que aliás
nem cai. É por causa do sonho americano que eles julgam
ter agarrado com a cocaína. São profissionais:
preparam a coca na mesa de vidro do salão, antes de
começarem a inundar Nova Iorque com o pó, mas
nunca deixam que o negócio interfira com a perfeição
idealizada da vida familiar, onde está sempre calor
e se ouvem canções de Natal. São "dealers".
Ela, notoriamente, mais aguerrida no negócio; ele,
mais doce e simultaneamente mais grave porque sobre ele pesa
a responsabilidade de chefe de família - é preciso
encontrar a boneca "Party Girl" que a filha quer!.
É triste o surpreendente conto de Natal saído
da obra convulsa e desigual de Abel Ferrara, que apareceu
em Cannes na secção Un Certain Regard. Chama-se
"R -Xmas" (abreviatura de "Our Christmas",
um confortante "O Nosso Natal", mas também
um mais irónico "Natal para adultos", já
que R é um signo para a classificação
etária dos filmes).
É uma fábula. E, diz Ferrara num texto que acompanhou
a exibição do filme, "um filme de época".
Passa-se em 1993, numa Nova Iorque, explica ainda o realizador,
que já não existe. Viviam-se os últimos
dias de David Dinkins como "mayor" da cidade, antes
de entrar em cena Rudolph Giulianni, que "limpou"
a cidade e a transformou, para desgosto dos nova-iorquinos
puros e duros, "numa Disneylandia". As palavras,
de novo, do texto do realizador, que não chegou a tempo
da conferência de imprensa do filme (ficou perdido num
avião algures entre Nova Iorque e Cannes). "Em
1993 sabíamos que às três da tarde, no
edifício X podia comprar-se a droga Y... e havia uma
fila à volta do quarteirão. No East Village,
vendia-se erva nas drogarias, como se fosse café. Não
havia polícias à vista, o mercado era a rua.
Agora, com uma chamada, com um móvel, há entrega
à porta".
Ele (Lillo Brancato, que Ferrara foi buscar à série
"Os Sopranos") e ela (Drea de Matteo, também
intérprete na série, faz de Adriana) vivem assim
os últimos dias do seu sonho (Ferrara continua imbatível
nessa capacidade de ver Nova Iorque como um cenário
difuso para uma parada de "zombies"). Às
tantas, ele é raptado por um gangster (Ice-T, caído
do céu, como se fosse um anjo num filme de Frank Capra?)
que se encontra com ela para exigir o resgate. E dar-lhe uma
lição de moral. E obrigá-la a prometer
que, com o marido liberto, os dois vão abandonar a
vida de "dealers" que "envenena os miúdos
na rua". Mas Ice-T não é um anjo. É
um polícia. Um polícia corrupto, que depois
de pregar a moral fica com o dinheiro.
A fábula, afinal, está do avesso, a única
coisa que parece certa é o aconchego familiar - embora
para isso existir, a moral tenha de ficar à porta.
E mesmo isso, o calor, a família, está prestes
a acabar. Ele e ela vão deixar de poder esquecer o
que fazem. O vermelho do sangue vai começar a misturar-se
no branco da coca, destruindo a "pureza" do negócio
familiar, e ela diz-lhe (é a cena final) "alguma
coisa mudou no teu olhar, o que foi?". Nos olhos dela
também, só que ela não vê.
"R-Xmas" é Abel Ferrara a percorrer as ruas
de "King of New York" (1990) e de "Bad Lieutenant"
(1992). "Ele" é, claramente, uma variação
das personagens de Christopher Walken e de Harvey Keitel nesses
filmes, mas antes de escorregar, vivendo ainda uma espécie
de inocência (por isso este filme está cheio
de crianças, como nunca os seus filmes estiveram).
É um pedaço de sonho nostálgico, escorregadio
como a neve, e que parece derreter como ela.
O produtor do filme, Pierre Kalfon, falando por Ferrara, deu
conta de que o realizador, que há três anos não
fazia um filme (desde "New Rose Hotel"), queria
mudar o rumo da sua obra, deixar de ser apenas o "cineasta
trash", "regressar a certos valores". Este
é, então, o possível "filme de família".
E para mostrar como o desejo de aconchego é firme,
Kalfon fez saber que se Ferrara chegar a Cannes vai ter ocasião
para vestir o primeiro "smoking" que comprou em
toda a sua vida.
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