"La Pianiste", de Michael Haneke,
em competição
E ao sexto dia chegou Isabelle
Huppert
Do nosso enviado Vasco
Câmara, em Cannes
Segunda-feira, 14 de Maio de 2001
Um papel no limite do pudor, do prazer e do sacrifício,
que torna a actriz favorita ao prémio de interpretação.
Não foi ao sétimo, mas
ao sexto dia que chegou Isabelle Huppert. Ficou no ar a pergunta
se não anda ali génio. Uns choraram ao ver "La Pianiste",
mas não da mesma forma como se chora nos melodramas - foi
choro de medo. Outros assobiaram, outros aplaudiram, mas as
ousadias que Isabelle comete no filme meteram medo, assim
como mete medo a forma terrivelmente lúcida como ela reage
perante a adulação ou a admiração dos outros: um discreto
sorriso, quase nada. Há quem aposte num prémio de interpretação
feminina.
"La Pianiste" foi realizado
pelo austríaco Michael Haneke ("Jogos Perigosos" e "Código
Desconhecido", que vai estrear no próximo mês em Portugal),
que fez com ele o seu melhor filme e que é o favorito do momento
para a Palma de Ouro da 54ª edição de Cannes. Reincide naquela
forma muito própria de Haneke de montar, através do cinema,
uma experiência, deixar que o espectador tire a conclusão
dos resultados e corra o risco de se queimar durante o processo.
Continua a ser, por isso, um universo profundamente perturbador
- e foi, bastava ver a consternação à saída da projecção para
a imprensa -, mas é o menos demonstrativo e manipulador dos
filmes do cineasta. Ao realizar "La Pianiste", adaptação de
um romance de Elfriede Jelinek, essa escritora tão desesperada
e tão enraivecida com a sua Áustria, Haneke fez um filme de
"género", metamorfoseou-se em realizador de melodramas.
Foi por isso, aliás, que
Huppert aceitou entrar no jogo A actriz contava ontem que
se recusou participar em "Funny Games" foi porque "todo o
seu propósito, a demonstração, eliminava a possibilidade de
romanesco, era quase uma experiência sacrificial para as personagens
e intérpretes, enquanto 'La Pianiste' dá espaço para o imaginário
do actor trabalhar".
Claro que há uma frieza
de que Haneke não abdica (é a "recusa em dar explicações para
as coisas", diz ele) que torna tão particular, mas não menos
avassaladora, esta sua forma de estar perto do céu e do inferno
- ou seja, de estar no melodrama.
Em "La Pianiste" a música
é simultaneamente o anjo e o demónio. Isabelle Huppert/Erika
é professora de piano no conservatório de Viena. Bach é, para
ela, o céu. É esse o seu quotidiano, as aulas e as provas
de admissão. Essa é toda a sua vida, é essa a sua prisão.
Erika tem 40 anos e vive com a mãe (Annie Girardot), tirânica,
opressora, o que prolonga a sua incapacidade de ter a autonomia
de uma vida adulta, o seu atrofiamento emocional. Música-pianista,
"uma relação quase sadomasoquista" no coração da cultura austríaca,
disse Jelinek numa entrevista. O filme já pôs a imprensa austríaca
- e alemã - em sobressalto: "este é um filme sobre uma sociedade
em particular ou sobre a sociedade em geral?".
O único escape de Erika
é o imaginário mórbido onde ela se refugia, os cinemas porno,
os "peep shows", e os pequenos rituais masoquistas de auto-mutilação
a que se dedica em casa (como golpear a vagina, para sangrar
como se fosse o período).
Até que - desencadeia-se
uma incrível experiência emocional, e não apenas a descrição
de "sintomas" - aparece na vida de Erika um aluno (Benoit
Magimel) disposto a seduzi-la porque ficou seduzido por ela.
É aí que se explicita a neurose dela, o pânico dos homens
e das emoções, o medo de perder o controle: Erika exige que
ele a torture, assume a dominação através da submissão.
O que Isabelle Huppert
faz em "La Pianiste" - e não se fala só das "cenas" de figuração
"arriscada" - poucas actrizes seriam capazes de o fazer. Como
ela diz, este tipo de argumento, este tipo de desafio, ousar
os limites do pudor, "não se deve aceitar de ânimo leve, e
ainda bem que é assim". No caso dela, claro, houve Haneke;
mas o caso dela é particular: o sacrifício e o prazer andam
de mãos dadas, numa espécie de procura da perda de si própria.
Isso é muito evidente no filme, onde o "sofrimento" da actriz
é quase uma experiência erótica, e onde o prazer de estar
refugiada num mundo imaginário é infantil. O registo de Huppert
nos filmes é habitualmente introspectivo porque, ela diz,
"o cinema quer revelar o invisível, uma câmara é uma lupa,
vem tirar-nos coisas que nós não sabemos que cá estão, por
isso não vale a pena estarmos a reforçar o processo com mais
coisas".
Voltando a Haneke: "Se
não fosse Isabelle não teria feito este filme. É a maior actriz
da Europa e se calhar do mundo". O filme resolverá todas as
dúvidas que alguém tiver em relação a isso.
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