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  Piccoli interpreta Gilbert, um actor, que fica com o neto, depois de uma tragédia familiar"
 
   

"Vou para Casa" em competição
Michel Piccoli, pela mão de Oliveira, seduz Cannes
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Domingo, 13 de Maio de 2001


Piccoli faz o papel de actor que diz "não" aos compromissos, depois de uma tragédia familiar.

Manoel de Oliveira permitiu ao actor Michel Picolli aquela que é, até agora, a melhor interpretação masculina do festival. Essas coisas não se esquecem, e por isso, se no sábado à noite, na televisão francesa, o actor francês falava em Luis Buñuel como figura paterna, ontem, na conferência de imprensa de "Vou para Casa", apresentado em competição, Piccoli voltou a querer - "com alguma coquetterie", disse -, ser filho, mas agora de Oliveira.

O encantamento - será mútuo - tinha tido expressão em Cannes, há dois anos, quando, por ocasião do anúncio do Prémio do Júri a "A Carta", Piccoli tinha "atirado" o que, a partir de então, passou a ser uma das cartas de apresentação do realizador português. Chamou-lhe "o cineasta mais jovem" da competição. Os elogios foram ontem renovados.

"Oliveira é um homem com uma autoridade diabólica, precisa, e ao mesmo tempo um farsante. Resolvam vocês esse paradoxo". E para frisar, nomeou Catherine Deneuve e John Malkovich, que têm participações especiais em "Vou para Casa": como é que "estrelas como estas se dispõem a entrar alguns minutos num filme, a não ser pela paixão pela pessoa misteriosa que é Oliveira?".

De qualquer forma, não é só Piccoli e Oliveira que estarão encantados um com o outro. "Vou para Casa" foi, provavelmente, dos últimos filmes do realizador o mais bem recebido numa sessão de imprensa em Cannes. Porque é um filme "mais fácil"? Porque, pormenor não negligenciável, tendo como personagem principal um velho actor de teatro, se aproxima da infância, terminando com o rosto de uma criança? De facto, o filme desenha permanentemente esse movimento de fuga, também de reencontro.

É a história de um velho actor que começa a dizer "não". Sobre ele abateu-se a tragédia: a morte da mulher, da filha e do genro num acidente. A partir de então, recusa trabalhos de compromisso na televisão, recusa uma nova hipótese de companhia feminina. Fica com o neto, única materialização familiar. E com um par de sapatos castanhos que comprou. Um dia, o actor abandona no "plateau" o realizador John Malkovich, que está a filmar uma versão do "Ulisses", de Joyce, e diz: "vou para casa".

Piccoli admite que ainda hoje não sabe muito bem se essa personagem, Gilbert, actor parisiense, é Michel Piccoli a fazer de Michel Piccoli (ou seja, se não há nessa personagem algo de mais confessional, algo para além da mera projecção que um actor faz sempre na sua personagem). E fala assim desse "não" que é uma outra forma de dizer "sim": "Quanto mais o mundo é complexo, mais ele se torna duvidoso, e mais necessário é aprender a saber dizer não e a quem dizer não. Dizer não significa, também, dizer sim, porque a escolha se clarifica cada vez mais". É essa a sedução de "Vou para Casa": reencontrar uma clareza, uma limpidez.

Não foi a morte da família que fez Gilbert querer ir para casa. Já antes, o teatro (excertos de "O Rei está a morrer", de Ionesco, onde entra Deneuve, e "A Tempestade", de Shakespeare) não aparecia, como nos outros filmes de Oliveira, apenas como cena frontal; aparecia como desejo de um fora de campo, os bastidores, esse espaço "vazio" à espera de ser preenchido com a saída dos actores do palco, depois da representação. O filme vai recompor-se a partir daí. Aproveitando a tragédia, "Vou para Casa" reencontra a gravidade do divertimento ligeiro. "Vou para Casa" (e Oliveira) não entende esta Paris confusa onde a monumentalidade convive com a feira ruidosa. Mas "Vou para Casa" (e Oliveira) encontra, em Paris, um café onde Gilbert/Piccoli pode parecer personagem de um filme mudo e o "silent movie" burlesco materializa-se fugazmente e depois desaparece. Ou encontra uma avenida de montras onde Picolli, depois dos sapatos comprados, olha para um quadro e, quase que juraríamos, lhe apeteceu começar a dançar.

Nada de muito definitivo, mas nessa ausência de grandiloquència (a grandiloquência de que enfermava tanto "Palavra e Utopia"...) Oliveira é tão musical, tão livre... Ontem, na conferência de imprensa, o realizador estava como o seu filme. Quais os momentos de cinema que mais o marcaram? De onde é que lhe vem a inspiração para os filmes? São duas perguntas que lhe fizeram, e ele respondeu que são duas perguntas de que ele gostaria de ter a resposta.

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