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  Com "Moulin Rouge", Luhrmann termina aquilo a que chamou a sua "trilogia da cortina vermelha"
 
   

Nicole canta, mas os seus males não espanta
Moulin Rouge abre 54ª edição de Cannes
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Quarta-feira, 9 de Maio de 2001


O cabaret, em 1900, com canções de Marilyn, Madonna e Elton John: um musical como um feérico espectáculo de vaudeville.

Este é um filme bastardo. Nasceu do cruzamento entre o trabalho de pesquisa para uma encenação de "La Boheme", de Puccini, um "show" de LaToya Jackson com serpentes e uma noite no cinema, numa sala do Rajastão indiano, frente a um ecrã de histórias enlouquecidas e décores miranbolantes. Isto é "Moulin Rouge", do australiano Baz Luhrmann, que abriu hoje o 54º Festival de Cannes. Como alguém notava, o que se vê podia integrar perfeitamente o alinhamento do espectáculo de abertura dos Jogos Olímpicos de Sidney. Aparece a representar os Estados Unidos, mas é um filme australiano, portanto.

O que é que isso quer dizer? Ninguém conseguiu definir bem, nem o próprio Luhrmann. Talvez começando por descrever: estamos em 1900, mas a voz off diz que é "o Verão do amor". A Paris chega Ewan McGregor, poeta desesperadamente amoroso do amor, que vai ser atraído para a sua perdição, Nicole Kidman, uma cortesã do Moulin Rouge. Antes disso, no cabaret, Ewan encontra as "crianças da Revolução", e enquanto se ouve "Children of the Revolution", dos T-Rex, aparecem Toulouse Lautrec, Erik Satie e o restante cortejo do "underground".

Finalmente ela aparece, Satine (Kidman), precedida por uma chuva de diamantes, e começa o can -can. Mas Offenbach é abafado por "Voulez-vous Coucher Avec Moi, Ce Soir" e, sobretudo, por "Diamonds Are a Girl's Best Friend". Nicole, que está tísica, ficará sempre com Marilyn (no meio da letra, ela ainda deriva por "Material Girl", de Madonna); a Ewan pertence "You're Song", de Elton John. O despique amoroso (esta é uma história trágica, de morte) culmina nos telhados de Paris: Ewan e Nicole, como Leonardo e Kate na proa do Titanic ("No topo do mundo!"), a comunicarem através de canções de Bowie, U2, Whitney Houston, Jimmy Sommerville (Cat Stevens e Donna Summer recusaram emprestar canções, por "motivos religiosos").

Moulin Rouge, 1900, como o Studio 54, nos anos 70, Moulin Rouge 1900, diz Luhrmann, "como o início da cultura pop, no sentido mais intrínseco de cultura popular". Depois de "Strictly Ballroom" e "Romeu e Julieta", Luhrmann termina aquilo a que chamou a sua "trilogia da cortina vermelha" - por causa do teatro e do artifício, por causa da consciência que o espectador tem de estar num mundo artificial, simultaneamente tão perto e tão longe - com um programa de variedades, um feérico espectáculo de feira, onde o "show" de marionetas, a pantomima, o dueto vocal xaroposo (mas também os fantasmas de Max Ohpuls e "La Ronde", ou de Marcel Carné e "Les Enfants du Paradis") são emanações de um território de fantasia digital. É claro que é impossível não nos lembrarmos do sonho que Coppola sonhou há 20 anos, "Do Fundo do Coração", mas Coppola permitia que a nostalgia ajudasse ao trabalho de luto pela morte de um género; Luhrmann (se calhar, outra marca "australiana") integra a morte para melhor fugir dela.

E como "Moulin Rouge" quer acelerar! Às vezes é "vaudeville" puro, quase solicitanto a intervenção do espectador na sala, ao contrário do musical tradicional, em que os "números" estão encerrados na redoma de perfeição do ecrã. Aqui a magia, os efeitos digitais e os diálogos quase que esperam ouvir os comentários do lado de cá do ecrã, para ajudar à "rave". Como se tudo se passasse numa tenda de circo. Mas algumas vezes - esse é o perigo quando se quer estar sempre no cume -, só as imagens é que correm, o espectador ficou para trás, derrotado, e no lugar da comunicação emocional fica um espanto que é aproximação cerebral.

É um musical originalíssimo, muitas vezes visionário, outras tantas com um enorme sentido de auto-ironia, assumindo a exposição das suas fragilidades. Uma delas, aliás, é Nicole Kidman. Luhrmann não se tem cansado de falar no "outro lado" da actriz, que ele quis expor, longe do "ícone". O que ele quer dizer é que ela pode ser alegre e não ter medo do ridículo, e deixar para trás a máscara de sofisticação e frieza. O filme surge numa altura em que a vida privada da actriz (raramente simpática, sobretudo quando se esforça para o ser), está em turbilhão, e em que é visível o pânico perante a hipótese de uma pergunta indiscreta - ontem, até agradeceu por não lhe terem feito nenhuma. Olhar para ela, em "Moulin Rouge", provoca sensações contraditórias.

É evidente, por um lado, que não aguenta o peso com que Luhrmann a carrega: Marilyn ou Marlene é demasiado para ela e para a voz dela (custa dizer, mas às vezes parece Kylie Minogue). Piora tudo quando se compara com o resto do "cast", de Ewan McGregor (excelente actor, excelente cantor), John Leguizamo (num Toulouse-Lautrec "palhaço pobre") - ou ainda Jim Broadbent (como director do cabaret), que transforma "Like a Virgin", de Madonna, num pedaço de opereta à la Gilbert and Sullivan (não por acaso, ele era uma parte do duo em "Topsy Turvy"). A carreira de Nicole está cheia de filmes em que, por excelente que tivesse sido, não foi ela a responsável pelo sucesso ("Disposta a Tudo") nem conseguiu evitar o fracasso ("Retrato de uma Senhora"). Por isso "Moulin Rouge" é decisivo. O esforço, a tensão, o nervosismo em relação à carreira comercial do filme - e ao (re)lançamento de Nicole Kidman como vedeta - foram aqui evidentes.
As suas fragilidades (na tela, e fora dela), por outro lado, às vezes são comoventes: Kidman surge mais frágil, humana. Satine, a sua personagem, fica à espera, até ao fim, de alguém que lhe dê a oportunidade de ser actriz. Raramente, comentava-se, Nicole Kidman apareceu assim tão risonha à imprensa. E isso pareceu tão triste.


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