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  Em "O Quarto do Filho", Moretti/Giovanni vive obsessivamente as últimas imagens
do filho
 
   

Festival Internacional de Cinema de Cannes
Nanni Moretti a caminho da Palma de Ouro
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Quinta-feira, 17 de Maio de 2001


Em "La stanza del figlio", é um pai que vive a perda da morte de um filho.

Continua obsessivo. Não largou o microfone, bateu nele porque não saía som, enroscou várias vezes uma garrafa de água, voltou ao microfone e quase se irritou porque não havia tradução simultânea em italiano para as perguntas que, na conferência de imprensa, lhe eram dirigidas em inglês ou em francês. "E falo eu tão a bem a toda a gente sobre o Festival de Cannes...", atirou Nanni Moretti. Parecia mesmo um filme de Nanni Moretti.

Nanni acabava, nessa altura, de receber uma ovação digna da Palma de Ouro, o que já era esperado com o rumor (sucesso de público e de crítica e prémios em Itália) e a ofensiva mediática que chegaram a Cannes primeiro do que "La stanza del figlio"/ "O Quarto do Filho", o filme.

"Chegou a hora de interpretar um psicanalista", explicava ele na conferência. Ou seja, interpretar aquele tipo de personagem sobre a qual ele dirigiria a sua irritação se fosse nos filmes anteriores. "É uma personagem mais adulta em relação a outras que interpretei. Mudei como realizador porque mudei como pessoa. Quis interpretar uma personagem que, embora com tiques, manias, obsessões, soubesse escutar os outros".

É a declaração oficial da mudança, materializada no filme que, toda a gente diz, é o filme de um Nanni maduro. Que não quer ser já o director da vida das outras pessoas. Que não quer só falar obsessivamente das suas neuroses - aliás, como psiquiatra agora tem é de cuidar da neurose dos outros.

No filme, chama-se Giovanni. Gosta de desporto, bebe o inevitável copo de água, fala em ir ao cinema e não gosta quando não lhe prestam atenção - ainda razoavelmente narcisista. Realmente, quando passa na rua uma troupe de hare-krishna, Giovanni não se insurge, como se poderia esperar, nem ironiza, até participa no desfile. E a política e a motoreta ficaram de fora. Só interessa a família.

Mas tudo é ainda "morettiano", as imagens a desfilarem como um esboço, um caderno de apontamentos no ecrã. Até conhecermos o resto da família: mulher (Laura Morante) e dois filhos. E os pacientes do psiquiatra. É uma família feliz, mas o filme aqui já mudou de tom. Laura Morante, que trabalhara com Moretti em "Sogni di Oro" e em "Bianca", diz que este é um "filme mais clássico". Que foi rodado com "extremo cuidado" e "honestidade, o que não está na moda em Itália" - acrescente-se também, com "pudor". Por causa da morte.

Há uma morte na família, a do filho. "O Quarto do Filho" é o melodrama dessa dor, a partir de um facto irremediável. Lá está a cena do caixão a ser lacrado e aparafusado. Há quem se vá abaixo em lágrimas ao ver este pormenor absolutamente laico, sem apelo à transcendência, essencial e simples. Como a morte. O que fazer depois dela? É essa a história desta família de Ancona: cada um para o seu lado. "A dor, ao contrário do que se diz, não une as pessoas, separa-as", diz Nanni. Em Cannes, ficaram todos emocionalmente presos a esta família.

No centro da deriva está Giovanni/Nanni. Obsessivo, repete na memória as últimas imagens do filho, o momento em que poderia ter ido com ele fazer "jogging" em vez de o deixar ir mergulhar - e morrer no mar. Giovanni quer voltar atrás e alterar o destino. Nesse aspecto, diz Nanni, é exactamente como ele.

O que há de novo, então? O que é que se perdeu de Nanni e se ganhou com Giovanni? Continua a ser Nanni. O tom é que é diferente. É Nanni a experimentar-se noutro formato. Titubeante, apalpando a maneira de fazer mais narrativo e de reconhecer a existência de outras personagens. Justo, sim, e pontilíneo, e ancorando nessa rarefacção a gravidade emocional do filme. Mas nem sempre capaz de nos fazer interessar pelas outras personagens. Pouco ficamos a saber de Laura Morante, esta família é mais uma ideia de família do que uma família real, e o desfile de pacientes no divã de Giovanni é um dispositivo que faz figura de bengala. O narcisista foi apanhado pela gravidade, "O Quarto do Filho" é uma espécie de dádiva. Mas é ainda um "work in progress", uma nova construção de um cineasta. Não tinha de ser ainda um grande filme. Como Nanni Moretti disse, repetindo o que alguém lhe tinha dito, "isto é mais do que um filme, é uma verdade emocional". Isso é mesmo a medida exacta para chegar à Palma de Ouro - ou, pelo menos, para integrar a lista dos favoritos, onde estão "La Pianiste", de Michael Haneke ou "Va Savoir", de Jacques Rivette.

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