"In the Mood for Love 2001"
Wong Kar-wai dá lição de cinema
em Cannes
Marta Fernandes
Quinta-feira, 17 de Maio de 2001
É o mais "in" dos realizadores asiáticos e o ano passado
marcou o Festival de Cannes com a exibição de "In the Mood
for Love". Não levou para casa a Palma de Ouro (conquistada
por "Dancer in the Dark" de Lars von Trier), mas Tony Leung
conquistou o troféu para a melhor interpretação masculina.
Foi Wong Kar-wai que este ano deu a lição de cinema, a décima
do certame. Mas fez mais do que isso e exibiu o inédito
"In the Mood for Love 2001". Palavras para quê, passemos
à prática.
Chegou de óculos escuros
- a sua imagem de marca - e foi imediatamente rodeado de fotógrafos.
Cinéfilos, alunos de cinema e profissionais aguardavam impacientemente
as palavras e o revelar dos segredos de Wong Kar-wai, que
este ano deu a lição de cinema em Cannes. Mas no fundo nada
de novo foi desvendado, nada que uma leitura mais atenta dos
filmes do realizador não deixasse já adivinhar. De inédito
houve apenas a exibição da curta-metragem "In the Mood for
Love 2001", para exemplificar o processo de realização.
"Não posso dar uma lição,
faço demasiados erros. Por isso decidi que era necessário
mostrar o processo", começou por dizer Wong Kar-wai, antes
de exibir a curta-metragem "In the Mood for Love 2001". Soube
a sobremesa, depois do filme, para aqueles que viram e ficaram
"In the Mood for Love". Interpretada pelos mesmos actores
(Tony Leung e Maggie Cheung), reencontra os dois amantes,
que nunca o chegaram a ser verdadeiramente, mas desta vez
numa Hong Kong de 2001.
A exibição serviu para
o realizador asiático explicar qual é o processo - ou o não-processo
- da realização dos seus filmes. "Tenho sempre uma série de
ideias para curtas-metragens. Começo com duas ou três histórias
e por vezes elas transformam-se num filme. Não podemos escrever
as imagens, a ambiência, os actores, a música. Quando escrevemos
uma cena, ela perde o ritmo", disse Wong Kar-wai, confessando
que, no início, se imaginava como Hitchcock, que previa tudo.
"Mas eu não sou Hitchcock, estou sempre a mudar, por isso
não vale a pena [prever]".
Godard é outra das referências
do realizador asiático, como admitiu o ano passado em entrevista
ao "Le Monde". "'A bout de souffle' ["O Acossado"] deu-me
o gosto da liberdade. Percebi que era possível transgredir
algumas regras da narração e da filmagem".
É por essa liberdade que
os filmes de Wong Kar-wai são histórias constituídas de pequenos
fragmentos de vidros coloridos, numa leitura quase caleidoscópica.
Vão-se encaixando e fragmentando, deixando o espectador suspenso.
Mostram histórias que às vezes nunca chegam a acontecer (como
em "Disponível para Amar", quando a senhora Chan ensaia com
Chow a conversa sobre a infidelidade do marido, que nunca
sabemos se chegou ou não a ter).
"Os meus filmes são feitos
a partir da adição de pequenos bocados. Trabalho por segmentos,
sem saber propriamente à partida os laços que os unem, ou
a sua ordem na narração. Durante a montagem ensaio uma série
de combinações. É como um 'puzzle' de que não conheço a ordem,
mas de que as peças se juntam pouco a pouco. E, no fim, descubro
o conjunto", disse Wong Kar-wai.
Não há argumento, não há
ideia do que vai ser a história. Os filmes nascem de um desejo
de trabalhar com determinados actores (que se tornam presenças
constantes no trabalho do realizador, como Tony Leung e Maggie
Cheung). As personagens desenvolvem-se durante as filmagens,
o que não torna o trabalho dos actores nada fácil. Mas, mesmo
assim, há algo de hipnotizante que os faz sempre voltar. Disse
Tony Leung a propósito dos filmes de Wong Kar-wai: "Representamos
por instinto. Não é fácil, temos vontade de nos esconder por
trás de uma personagem, mas ficamos completamente nus no ecrã".
Frame a frame, nota a
nota
Wong Kar-wai comparou
ainda, durante a "leçon", o trabalho da sua equipa (com quem
trabalha há 15 anos) a uma "jam session", que se reúne de
vez em quando e a música vai surgindo. A música, essa mesma
música que está sempre presente e é tão importante nos filmes
de Wong Kar-wai. "É ela que dá o ritmo. Antes de começar a
filmar, tenho a música sempre em mente. Ela serve-me de referência,
para descrever um momento, uma cor". De facto, poucos conseguirão
escutar do mesmo modo o "California dreamin'", dos Mamas and
the Papas, depois de terem visto "Chungking Express". A música
ficou envolta numa ambiência mais "cool" e mais contemporânea
e com um leve cheiro a rulote de "fast-food".
O mesmo Michael Galasso
- que assinara a banda sonora de "Chungking Express"- voltou
a estar presente em "Disponível para Amar". No filme, as personagens
andavam como se pairassem no ar - Chan Li-zhen sempre deslumbrante
com os seus vestidos "quipao" florais e Chow envolto nos círculos
rodopiantes do fumo dos seus cigarros. Embalados pelos violinos
de Galasso, que marcavam o compasso de uma câmara lenta, deambulavam
em encontros e desencontros cruzados, por entre escadas íngremes
e apertadas, sob a chuva torrencial, debaixo de uma noite
implacável alumiada pela luz trémula dos candeeiros de rua.
Saimos do filme a cantarolar baixinho, numa tristeza contida,
as letras de Nat King Cole ("Quizas, Quizas" e "Aquellos ojos
verdes"), que ainda cantamos hoje.
Mas, no final da lição,
o único conselho que se ouviu aos alunos de cinema foi "aprendemos
a fazer filmes na vida de todos os dias. Vão ver o máximo
de filmes possível, os bons e os maus, porque há sempre qualquer
coisa a reter". Nem que seja uma melodia, acrescentamos nós.
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