54ª edição de Cannes a caminho do
fim
Lenine e outros ídolos com
pés de barro
Do nosso enviado Vasco
Câmara, em Cannes
Sexta-feira, 18 de Maio de 2001
À medida que a competição da 54ª edição de Cannes vai chegando
ao fim, apareceram Lenine, através de "Taurus", de Sokurov,
e outros ídolos com pés de barro.
Depois das emoções provocadas
por "O Quarto do Filho", de Moretti, esse corredor de fundo
para a Palma de Ouro, e quando alguma imprensa já começa a
abandonar o festival, como se daqui até ao palmarés, no domingo,
só restasse calendário para cumprir, sem consequências (mas
ainda faltam Imamura e Hou Hsiao-Hsien), chegou "La Chambre
des Officiers", de François Dupeyron. Foi a última entrada
francesa na competição, e é assim uma espécie de resposta
à comoção emocional criada na Croisette pelo filme italiano.
Mas, exceptuando a localização espacial para que apontam os
títulos, o "quarto", nada há mais para comparar, até porque
o segundo aposta naquilo que o primeiro recusa: a retórica
da dor.
Durante a I Guerra Mundial,
um jovem tenente chega à frente de batalha, mas não tem tempo
de participar no conflito: uma explosão destrói-lhe o rosto.
Enviado de regresso a Paris, ao hospital, para a "ala dos
oficiais" que está transformada no clube dos desfigurados,
inicia o processo doloroso, física e emocionalmente, para
chegar à aceitação da sua diferença - sim, inevitavelmente,
para chegar ao amor também.
Em favor do realizador
deve dizer-se que é um "filme de época" menos por fazer "reconstituição"
e mais por tentar captar a respiração de uma era - sujidade,
odores, feridas. Mas, sendo um filme que joga muito no que
mostra e no que oculta, acaba por se deixar ir atrás do jogo
de escondidas para impressionar, através das maravilhas da
maquilhagem (os rostos desfigurados).
"Taurus", de Alexandre
Sokurov
É legítimo que se pergunte,
também: o que é que fica quando se tira a maquilhagem - o
"sfumato" da imagem - a "Taurus", do russo Alexandre Sokurov?
Depois de Hitler, em "Moloch", segue-se agora Vladimir Ilitch,
o pai da revolução bolchevique, no segundo de uma série de
filmes que o realizador de "Mãe e Filho" está a dedicar aos
ditadores do nosso tempo. Sokurov está a abatê-los no crepúsculo
das suas vidas, como se quisesse captar o momento em que,
se não o remorso, pelo menos a consciência do falhanço desceu
sobre aqueles que antes se deixaram enebriar na orgia do poder.
Lenine está doente, senil,
cortado do mundo por aqueles, como Estaline, que esperam a
sua morte. Tudo a postos, então, para ouvir a respiração e
seguir os movimentos de um corpo desarticulado. Bisturis a
postos, então, para entrarem dentro do cadáver do mito. Sim,
as brumas na imagem dão ao todo uma velatura tchekoviana,
e o efeito é belíssimo. Mas para além delas não estará apenas
um patético teatro que se compraz no grotesco?
"Desert Moon", do japonês
Shinji Aoyama
Um ídolo com pés de barro
arrisca-se a ser o japonês Shinji Aoyama, que para além da
sua prática cinematográfica tem um currículo de teórico, de
ensaísta, com colaborações para as edições japonesas das revistas
Cahiers du Cinéma e Esquire. É considerado um dos expoentes
de uma nova vaga de cineastas japoneses, esteve presente na
competição do ano passado do festival com "Eureka", um filme
de quatro horas filmado a preto e branco que fez delirar,
sobretudo, a crítica francesa. Já nessa altura havia alguna
sinais de inconsequência na forma como se desenvolviam os
desafios formais que eram tomados - nesse caso específico,
a relação com o tempo, trabalhado por Shinji Aoyama de forma
incontinente. "Desert Moon", o regresso do japonês à competição,
retoma o "tema" do filme - o colapso da família moderna, com
internet e realidade virtual ao fundo - mas é muito mais eloquente
na exposição das suas fraquezas.
"Storytelling" desiludiu
e "No Such Thing" foi considerado um desastre
Não revela propriamente
pés de barro, mas ainda assim foi uma grande decepção: Todd
Solondz, depois de um dos grandes filmes do cinema americano
recente, "Happiness", fez um acto de contricção. "Storytelling"
(Un Certain Regard) são duas histórias, que não se percebe
bem porque é que estão juntas, a não ser pelo facto de neças
ecoarem o mesmo tema: as relações de manipulação e de poder
entre realizador e personagem, o perigoso equilíbrio entre
a realidade e a ficção. Solondz quer contar uma história e,
simultaneamente, medir as consequências desse acto. Mas esqueceu-se
do envolvimento emocional, e visivelmente interiorizou as
acusações (injustas) que lhe fazem de ceder à bizarria ou
de se aproveitar dos "vícios" das personagens. O remorso não
dá grande cinema.
Mas houve mesmo um ídolo
que caiu em Cannes, e com estrondo: Hal Hartley. O seu último
filme, "No Such Thing" (Un Certain Regard), revisitação do
filme de monstros, como se fosse uma versão pós-moderna de
"King Kong", foi recebido pela crítica como um desastre que,
ao que se diz, terá consequências irreparáveis para a carreira
do antes tão aclamado cineasta.
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