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  O filme de Godard é sobre os quatro momentos do amor: o encontro, a paixão, a separação e a reconciliação
 
   

"Eloge de l'Amour", o regresso do cineasta à competição
Em Godard há God, dizem eles
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Terça-feira, 15 de Maio de 2001


Um filme sobre a memória, o amor, o casal, e as outras obsessões godardianas, mas aqui envolto numa tocante nostalgia.

"Ele é aquele que esperamos, ele é aquele que aguardamos", clamava o diário "Le Figaro", convocando a liturgia. No exterior da "capela", o segurança fez uma pergunta retórica, porque, afinal, já percebera a razão da aglomeração, uma hora antes da sessão, à porta de uma pequena sala, para ver um filme que passava em sessão única. "É o Godard?".

Sim, era Godard, regressado à longa-metragem cinco anos após "Forever Mozart", depois da maior interrupção na sua carreira desde o seu "regresso ao cinema" em 1979, com "Salve-se quem Puder".

Sim, era Godard, regressando à competição depois de "Nouvelle Vague", mas o homem está cansado do mito. Quando vê "Godard" escrito nos jornais, só pensa que esse era o apelido do avô. Por causa do mito, diz, já ninguém conversa com ele, nem na rodagem dos filmes, nem depois. Foi ficando condenado a falar sozinho. Como os filmes, que falam sozinhos - são frases, e ele diz que sabe que hoje "cada vez menos é tempo de frases".

"O que me incomoda muito é a discrepância entre a lenda, o que se vê de fora, e o que se passa dentro de mim", lamentou numa entrevista. E logo ontem um americano atreveu-se a dizer "em Godard existe God (Deus)!". Jean-Luc abanou a cabeça, incomodado.

Os americanos, aliás, não são bem tratados em "Eloge de l'Amour". Godard chama-lhes "os habitantes sem nome da zona que fica entre o México e o Canadá". Mas ontem muitos habitantes dos EUA estavam apaixonados por "Eloge de l'Amour". A esses, Godard chama "os bons americanos".

Spielberg não é dos bons. No filme, dois burocratas da sua casa de produção deslocam-se a França para comprar as memórias de um velho casal da Resistência francesa - "os americanos não têm memória, precisam de comprar as dos outros". Esta é a segunda parte de uma história com princípio, meio e fim mas não necessariamente nessa ordem.

No princípio, é a película e o preto e branco. Paris, cidade por onde Godard não andava há muito tempo. Há um cineasta, um honesto "petit soldad" que faz o "casting" para um filme sobre os momentos do amor: encontro, paixão, separação e reconciliação. Edgar é honesto. Lê as "Notes sur le Cinématographe" de Robert Bresson. "Dirigir não é dirigir os outros é dirigir-se". São as habituais "frases", de pintura, de literatura, de gestos e olhares, em trânsito nos lugares, num fluxo com dificuldade em se estruturar. Mas começará a ser o filme mais fluido de Godard. "É natural, diz ele, estou mais velho".

II parte: cor, vídeo, Bretanha

É um "flash-back", mostra como Edgar chegou ao seu projecto de filme, como se tornou "adulto", "homem com história". É uma questão de memória, "Eloge de l'Amour" é um filme sobre a memória. Sobre o casal e sobre a Resistência - contra a América, contra a televisão, e a Resistência da II Guerra, que hoje é traficada para o cinema. Há coisas que não se filmam, diz Godard (a invectiva contra Spielberg e Hollywood é por causa do Holocausto e de "A Lista de Schindler"), e o casal de idosos de "Eloge de l'Amour" trafica a sua história. Ser adulto, é ter uma história.

Estão aqui as mesmas invectivas e obsessões, a arte e o comércio, mas este é um Godard tomado pela melancolia, pela nostalgia, delimitando um território de intimidade e de confissão, como em "JLG". É um "road movie" pela terra dos sentimentos. Godard à beira de ser tornar adulto?

Deus é que ele não é. Ou não se enganaria e corava como ontem, ao querer dizer "Anna Karenina" e ao sair-lhe Anna Karina. A "História foi substituída pela técnica", diz-se em "Eloge de l'Amour".

Podia ser dita numa outra celebração litúrgica, a de "Il Mistere delle armi", com que o muito raro Ermano Olmi (também mito, símbolo de um cinema que já desapareceu) regressou à competição de Cannes, onde, em 1978, "A Árvore dos Tamancos" recebeu a Palma de Ouro.

"Il Mistere delle armi" é um filme sobre o final de um tempo, a era medieval, quando as armas de fogo se intrometerem nos códigos de honra da "arte da guerra". Segue o percurso de Giovanni di Medici, cavaleiro do exército do Papa, em 1520, lendário aos 20 anos, mas que foi derrotado por um canhão (não pelo combate corpo a corpo). Olmi quer falar do progresso, "cada vez mais impessoal e mortífero, que não desenvolveu o crescimento humano, moral e civil" através de um filme de guerra singular, estruturado sobre uma sucessão de vozes interiores e invocações que abriram - e rapidamente fecharam - a bolha de um outro tempo na programação da competição de Cannes.

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