"Mulholland Drive" na competição para
a Palma de Ouro
Mr. Lynch, explique o seu sonho
Do nosso enviado Vasco
Câmara, em Cannes
Quarta-feira, 16 de Maio de 2001
A enigmática obra de David Lynch seduziu Cannes. Mas deixou
o festival com um pedido obsessivo: "Mr. Lynch, explique"
o filme.
É o pedido que nas últimas
24 horas obceca o Festival de Cannes: "Mr. Lynch, explique
o seu filme!". Mr. Lynch não quer explicar.
"A mente é um sítio maravilhoso
para se estar", responde apenas. "Não sei qual é a extensão
da mente. Apenas sei que as ideias aparecem lá e que são fascinantes"
- ele vê-as como se fossem "peixes". "De onde elas vieram,
não sei. Mas o facto é que isso me põe doido", com vontade
de fazer filmes. A ideia entrou no cérebro de David Lynch
ao ver a placa que anuncia Mulholland Drive, a mítica estrada,
em Los Angeles, que serpenteia pelas colinas de Santa Mónica,
passa por Hollywood e desagua em Malibu e no Oceano Pacífico.
Uma parte é residencial, a outra está abandonada aos fantasmas
que nela se foram projectando - ou que nela foram abandonados.
A ideia começou com a visão dessa placa a ser parcialmente
iluminada pelos faróis dos carros que passam. De noite, é
um sítio misterioso, porque aí estão à solta as ilusões perdidas
de todas as starlettes que ao longo dos anos perderam a inocência
nas colinas de Hollywood.
"Que as pessoas entrem
então nesta viagem por Mulholland Drive, que sintam qualquer
coisa que não se explica", desejou David Lynch, e assim fez
um episódio piloto para uma série para a cadeia televisiva
ABC. Mas o projecto abortou e só financiadores franceses conseguiram,
dois anos depois, que o episódio, com novas cenas filmadas
e nova montagem, acabasse por ser mais uma participação do
realizador na competição de Cannes.
É uma maneira de descrever
"Mulholland Drive": uma viagem durante a noite por uma estrada
escura, com o vento a trazer histórias do passado de Hollywood
e outros destroços humanos. Poderá ser um pesadelo. Se for
esse o caso, quem é que o sonha? É uma pergunta que se cola,
como aquela outra: "quem matou Laura Palmer?"
Há duas raparigas: uma
morena, que ficou amnésica depois de um desastre brutal -
diz que se chama Rita porque viu esse nome num cartaz de um
filme, "Gilda"; a outra é loura, e chegou a Hollywood para
realizar o sonho de ser uma grande actriz e uma estrela -
chama-se Betty. Rita provavelmente não se chama Rita e se
calhar Betty é que perdeu a memória e a identidade algures
a caminho do seu sonho. Toda a gente, em "Mulholland Drive",
tem outro nome num universo que corre em paralelo.
Lynch diz que o filme
é "uma história de amor na cidade dos sonhos". Uma história
de amor entre Rita e Betty. Começa como se fosse uma "soap"
(as actrizes, desconhecidas, vêm da televisão), com o deslubramento
pela luz falsa, e um maravilhamento e sensualidade que são
entorpecedores. Rita e Betty amam-se, nuas, como numa novela
"pulp" ou num "exploitation movie" - o realizador corre aqui
alguns riscos, não tanto por causa das cenas de nudez, mas
sobretudo porque quando parece que vai pela farsa (o registo
falso, quase cabotino, das actrizes), a música, os sons puxam
pela fé emocional do espectador, que começa a ver luzinhas
a brilhar em todo o sítio. Mas já nessa parte há um cadáver
em putrefacção.
Depois há uma caixinha
azul, por onde alguém entrou. E a partir daí desemboca-se
num mundo com pessoas do tamanho de ratos. Houve um corte,
ou será que alguém acordou? Betty deixou de ter o sorriso
de um anúncio televisivo. Está destruída pela perda. E nunca,
nunca mais se chamará Betty.
As comparações com "Twin
Peaks" - a série e o filme - não se fizeram esperar em Cannes,
embora Lynch responda que "se certos filmes são similares
a outros, estebelecem-se sempre novas regras, novos sentimentos
- embora certas harmonias regressem". A maior diferença em
relação a "Twin Peaks- Fire Walk with Me" (para além de "Mulholland
Drive" ter tido recepção vibrante, ao contrário de "Fire Walk...",
que, em 1992, foi violentamente rejeitado), será a sua sensualidade
opulenta, quase "camp", e o facto de colocar o espectador
numa insinuante disposição para receber o apelo do sonho.
Ninguém percebeu a história
do filme, nem os actores?. Isso não foi problema, disseram
aqueles, porque se sentiram "parte de uma mesma mente, de
um universo hermeticamente fechado", como se fossem "uma tela
em branco". Mr. Lynch, explain! "Não é preciso", respondeu.
"A abstracção é uma coisa tão extraordinária no cinema! Toda
a gente percebe".
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