Coppola, "director's
cut"
Nostalgia,
nostalgia...há quem se lembre do genérico -
a única vez que "Apocalypse Now" foi projectado
assim - com o ecrã a negro e sons de selva e gritos
a ecoarem da instalação sonora.
Foi em 1979. Francis Ford Coppola aceitara o convite do festival
para exibir "Apocalypse Now" em versão "work
in progress". Quando chegou o dia da exibição,
alguns críticos tinham furado o embargo a que se tinham
comprometido depois de verem o filme em visionamentos exclusivos,
de forma que "Apocalypse Now" chegava a Cannes com
o carimbo: "um imenso falhanço".
Coppola passou a noite anterior num iate ancorado na baía,
esperando o pior. Mas o dia seguinte foi melhor do que pensava
- embora tumultuoso e teatral. Depois de um ano de notícias
e rumores sobre a rodagem, doenças de actores, tufões
e outras catástrofes, a imprensa estava atordoada:
qual era o significado da sequência final? A personagem
de Martin Sheen ficava apanhada pelo espírito de Kurtz/Marlon
Brando?
Coppola oscilava entre a crítica aos que só
pensavam nos milhões que o filme tinha custado, a defesa,
esmiuçando os gastos com uma precisão desesperada,
e a grandiloquência "bigger than life". Ficou
célebre: "Este é um filme sobre o balanço
precário entre o Bem e do Mal, entre a luz e a escuridão".
Ou, mais definitivo para o mito: "Tivémos acesso
a demasiado dinheiro, demasiado equipamento. Construímos
aldeias na selva, o mau tempo destruíu-as, e nós
enlouquecemos. Percebi que não estava a realizar um
filme. O filme realizou-se a si próprio - ou a selva
fê-lo por mim".
Recebeu a Palma de Ouro (ex-aequo com "O Tambor",
de Schlondorff), teve boa "performance" nas bilheteiras
e fez de Coppola o príncipe visionário dos "movie
brats".
Cannes, 2001. Coppola tornou-se mais real, à força
da falência de alguns sonhos e à força
de encomendas alimentícias. "Apocalypse Now"
é um clássico, mas o irracional continua à
solta por ali. Espera-se que os cerca de 50 minutos adicionais
da versão que vai ser apresentada em Cannes não
o tentem "explicar". Que o filme continue no coração
das trevas, apesar desta versão, supostamente, solidificar
a arquitectura dramática do filme e o "background"
histórico: mostra a famosa sequência da "plantação
francesa" (já incluída no documentário
"Hearts of Darkness: A Filmaker's Apocalypse"),
mais 15 minutos de Brando - em cenas diurnas, para não
ficar escondido pelas sombras -, mais bombardeamentos, mais
napalm, mais surf e maior duração para a sequência
das "bunnies" da Playboy. O final é o mesmo.
Como figurante, andou por essas imagens Roman Coppola, que
hoje tem 35 anos. O pai Francis viverá alguns dos seus
sonhos através da família, e depois da filha
Sofia ("Virgin Suicides") e do genro Spike Jonze
("Queres Ser John Malkovich?"), chegou a vez de
Roman. "CQ", a sua estreia na realização,
vai ser apresentada fora de competição. Foi
filmado na Europa, tem um "cast" internacional (Gérard
Depardieu, Giancarlo Giannini e Élodie Bouchez) e é
uma história, claro, sobre o cinema: um realizador,
nos anos 60, quer fazer um filme de ficção científica
sobre o ano 2000. Claro, diz-se que Roman usa o cigarro ao
canto da boca como o papá... mas isso era nos tempos
de "Apocalyse Now".
David Lynch
Em
1990, também se encontraram em Cannes: David Lynch,
Jean-Luc Godard e Manoel de Oliveira. O fósforo a arder
no genérico de "Wild at Heart" incendiou
essa edição, de onde Lynch sairia com a Palma
de Ouro. Mas foi um ano marcante, também, para o suíço
("Nouvelle Vague") e para o português ("Non
ou a Vã Glória de Mandar"). Estão
juntos outra vez: "Mulholland Drive" (Lynch), "Eloge
de l'amour" (Godard, um filme sobre a guerra e a resistência),
"Je rentre à la maison" (Oliveira, a história
de um criador que decide que chegou o momento de parar).
Mulholland Drive é a estrada que serpenteia pelas colinas
de Hollywood - começa num "no man's land",
atravessa o puzzle dos "rich and famous" e mergulha
no Pacífico - e a ela está ligada uma mitologia
funesta, histórias de desespero e morte. É compreensível
que tenha sido na rodagem da série "Twin Peaks"
que Lynch tenha tido sonhos com o título Mulholland
Drive. Mas o pesadelo só se concretizaria quando a
ABC, 10 anos depois de Twin Peaks, encomendou nova série
ao cineasta. Ele rodou um episódio piloto de hora e
meia, só que o resultado gelou de pânico os investidores.
O realizador acabou por ser salvo pelo Canal Plus, que investiu
para que o episódio se transformasse num filme.
As expectativas colocam "Mulholland Drive", filmado
com actores desconhecidos, do lado de "Twin Peaks"
e de "Blue Velvet" - como se Lynch estivesse a fazer
por Hollywood o que fez pela "smalltown America".
Mas o realizador desfaz pouco o segredo do filme. É
uma história de mistério e uma história
de amor e há algum delírio sobre o sonho hollywoodiano.
Uma rapariga aparece amnésica em Mulholland Drive,
depois de um acidente de carro. Arrasta-se até ao apartamento
de uma aspirante a actriz para pedir ajuda. Ficam, assim,
duas raparigas perdidas em Hollywood. Depois de "Wicked
Game" para "Coração Selvagem",
há novamente uma canção obsessiva de
Chris Isaak.
Joel e Ethan
Coen
"The
Man Who Wasn't There", chama-se o filme. Mas os Coen,
Joel e Ethan, estão sempre lá. Desde que Cannes
deu a Palma a "Barton Fink", em 1991, foram adoptados
pelo festival, que os acolhe nos melhores e nos piores momentos
- como "O Brother Where Art Thou", no ano passado.
"The Man Who Wasn't There" renova com a matriz "film
noir" da obra dos irmãos (foi o projecto a que
se dedicaram depois de terem adiado "To the White Sea",
épico sobre a II Guerra). Inicialmente intitulado "The
Barber Movie", conta a história de um barbeiro
(Billy Bob Thornton) que desconfia que a mulher (Frances McDormand)
o engana com um empresário (James Gandolfini, da série
"Os Sopranos"). Passa-se na América de 1949,
na frustração do interior - o marido e a mulher
conheceram-se num "blind date" e o acontecimento
das suas vidas é o bingo uma vez por semana -, foi
rodado a preto e branco, tem voz "off" de narrador,
e não custa perceber que a "homenagem" ao
cinema americano dos anos 40 se refere a filmes como "O
Carteiro Toca Sempre Duas Vezes", de Tay Garnett ou "Pagos
a Dobrar", de Billy Wilder. Mas os Coen vão impor
um "twist" à fórmula. Afinal, Frances
McDormand não é nenhuma "femme fatale",
e muito do que se passa no filme é só na cabeça
do marido, o típico pobre diabo que desencadeia o seu
inferno. A saber: chantagem, assassinato.
Nanni
Moretti
Era
em "Abril" que alguém perguntava a Nanni
Moretti: "Quando é que faz um filme normal?".
"Abril" e, antes dele, "Querido Diário",
não eram filmes "normais". Era algo de muito
pessoal (diários íntimos) e um "work in
progress". Com eles, tornava-se confuso encaixar Nanni
Moretti numa categoria. Quem era? Actor, ele próprio
ou encenação de si próprio? Diário
("Querido Diário") ou encenação
de diário ("Abril")?
Nanni dizia, por alturas de "Abril", que não
sentia pressões do exterior para fazer "um filme
normal", mas que essa pergunta - "Quando é
que faz um filme normal?" - vinha da sua própria
voz interior. Anunciava, então, que o filme seguinte
teria uma narrativa mais convencional, e ele interpretaria
uma "personagem", convenientemente sinalizada como
tal.
Isso foi há três anos. Há poucos meses
a Itália - crítica e público - saudou
a estreia de "La Stanza del Figlio". Depois do nascimento
do filho (acontecimento que em "Abril" serve, sobretudo,
de marca simbólica, surge a par da eleição
do primeiro governo de esquerda em Itália), Nanni continuou
a ser "filho". Ou a efabular-se como tal, em narrativas
fracturadas pelas dúvidas e por um interminável
narcisismo. Mas agora é pai num melodrama.
É a história de Giovanni (Moretti), psicanalista,
casado com Paola (Laura Morante, de regresso ao cineasta depois
de "Bianca"). O casal tem dois filhos adolescentes.
Um deles morre num acidente, e a vida serena da família
é interrompida. A dor levará à separação
do casal, e ao rompimento das relações entre
Morreti/psicanalista e os seus pacientes. Mas uma viagem pela
França trará a unidade perdida. Levou a Itália
às lágrimas, e com ele se saudou a nova maturidade
de Nanni Moretti.
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