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  O coração do júri bateu ao ritmo de "O Quarto do Filho" e Moretti conquistou a Palma de Ouro
 
   

Moretti recebe a Palma de Ouro com "O Quarto do Filho"
Ave Nanni, com pianista em fundo
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Domingo, 20 de Maio de 2001


"O Quarto do Filho", de Nanni Moretti, recebe a Palma de Ouro de Cannes, e "La Pianiste", de Michael Haneke, recebe três galardões, entre os quais os de melhor actriz e melhor actor.

O coração do júri, pelos vistos, bate ao mesmo ritmo do da maioria dos "festivaleiros" que, tendo chorado ou não durante o visionamento de "O Quarto do Filho", apostavam em Nanni Moretti para a Palma de Ouro. Hoje, a 54ª edição do Festival de Cannes coroou a entrada no mundo grave dos adultos do realizador/actor que antes andava de vespa e queria fazer um musical sobre um pasteleiro trotskista na Itália fascista dos anos 40 e que agora diz que está mais maduro e por isso fez um filme sobre a morte e a dor.

Foi a Palma e foram muitas palmas para Nanni, que permitiu em Cannes uma silenciosa catarse colectiva. Ao ver o realizador em cima do palco, com o fôlego cortado pela emoção, não se pode deixar, no entanto, de desejar que Nanni não cresça assim tanto, e que, em próximos filmes, se dê largas, formalmente, à "imaturidade" que certamente vai conseguir ainda encontrar. Mais conturbada catarse, a meio do festival, foi a de "La Pianiste", do austríaco Michael Haneke, que terá sido o melhor filme exibido na competição (não necessariamente o mais amado ou o mais fácil de gostar). Era demasiado "duro" para receber a Palma de Ouro, isso adivinhava-se. O que surpreendeu foi o facto de o júri, presidido pela actriz e realizadora sueca Liv Ullman, ter feito dele uma aposta desta edição.

Sim, Nanni ganhou a Palma, mas "La Pianiste" foi nomeado três vezes no Palácio dos Festivais: pelo Grande Prémio, para Haneke -um cineasta que com os filmes faz habitualmente experiências calculistas e calculadas, mas que aqui se transcendeu, abrindo espaço aos ecos mais indefiníveis do romanesco (o filme é, antes de mais, um vibrante melodrama)-; e ainda por Isabelle Huppert e pelo inesperado Benoît Magimel.

A primeira foi, de longe, a maior actriz que aqui se viu. E quando se vê o filme é fácil corroborar a opinião de Haneke de que ela é a maior actriz da Europa, provavelmente a maior do mundo. O prémio, anunciou Liv Ullman com emoção, foi atribuído por unanimidade. Isabelle, ovacionada também com euforia, esteve à altura da sua prestação de pianista, agradecendo, no palco, a Bach, Schubert e Mozart e dizendo que "se há filmes que nos metem medo" - este mete e ela também . "Se há filmes que parece que nos vão roubar tudo, são esses precisamente que nos dão tudo".

Por a sua presença ser tão totalitária, toda a gente esperava o prémio para Isabelle, e ninguém reparou que "La Pianiste", um filme sobre a música, é um concerto de câmara. O júri, muito bem, lembrou que também ali estava outro instrumentista, o jovem Benoît Magimel, sem o qual não haveria música em Huppert nem no filme - Magimel interpreta um estudante do conservatório que tenta seduzir a personagem de Huppert, desencadeando rituais masoquistas na pianista.

No início da cerimónia, Liv Ullman, de forma muito desassombrada, lembrava que a regra do jogo destes festivais é um palmarés ser um ponto de vista, o do júri; e que um palmarés é, ainda, a tentativa de conciliar vários pontos de vista diferentes, os dos jurados. Ninguém nos jurados tem de se zangar (embora às vezes...), disse ela, porque os sons e as fantasias dos filmes de que se gostou são sempre uma experiência individual que permenece. Terão os trabalhos do júri desta edição sido mesmo difíceis? É fácil especular, mas assim se entenderá melhor o prémio da realização ex-aequo a Joel Coen, por "The Man who wasn't there", e a David Lynch, por "Mulholland Drive".

Sim, no primeiro são os Coen a fazer à Coen, e no segundo Lynch é Lynch. Cannes "ocupar-se-ia" assim, nesta edição, de autores que fazem parte do seu património, que aqui receberam já a Palma de Ouro, mas que têm a sua quota de desaires e assim faria sentido lamber-lhes as "feridas". Numa edição que ficou marcada pela evocação da memória de Cannes (recorde-se, foi também exibida a nova versão de "Apocalypse Now", filme que em 1979 foi aclamado no festival), este prémio ex-aequo cumpre o ritual de auto-celebração. Será verdade, mas ficou evidente que os irmãos Coen continuam a fazer o mesmo que fazem há anos e estão nitidamente em perda (o filme foi recebido de forma razoavelmente desinteressada), enquanto o filme de Lynch, que até toca algumas cordas diferentes (o humor e alguma inclinação "camp"), é certamente problemático e não muito evidente. Mas criou decididamente o mistério, e "Mulholland Drive" adensa-se com o tempo.

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