"Obra-prima maior do que a obra-prima"
Apocalipse novo
Do nosso enviado Vasco Câmara,
em Cannes
Sexta-feira, 11 de Maio de 2001
Vinte e dois anos depois da estreia no festival, Francis
Coppola apresentou uma versão com mais 50 minutos. "Obra-prima
maior do que a obra-prima", disse-se.
Vinte e dois anos depois
de "Apocalypse Now", Francis Coppola venceu de novo em Cannes
com "Apocalypse Now". Vinte e dois anos depois de ter entregue
ao festival uma versão "work in progress" do filme - na esperança
de calar as páginas de acidez que destilava a imprensa americana
ao vaticinar a derrota mesmo antes de ver o filme - e de ter
saído do certame com uma Palma de Ouro, Coppola ouviu ontem
elogios do género "Obrigado por ter transformado uma obra-prima
numa obra-prima maior" no final da apresentação da "versão
definitiva" (para ele, Francis) - mais cerca de 50 minutos,
numa duração total de três horas e 23 minutos.
"Cannes salvou 'Apocalypse
Now'", em 1979, reconheceu Coppola - o festival, aliás, foi
sempre afectuoso para ele, quer na primeira vez que o recebeu,
com "You're a Big Boy Now", em 67, quer com "The Conversation",
Palma de Ouro em 74.
Hoje, "Apocalypse Now",
que foi um sucesso de bilheteira, já não é uma questão de
vida ou de morte, já não precisa de ser salvo. A questão,
até, era a de saber se, com esta inflacção de "director's
cut" que são apenas estratégias de "marketing", o filme não
seria atraiçoado. O resultado: não sendo propriamente um filme
diferente, é um filme novo, como se o tempo tivesse permitido
que ele crescesse e pudesse assim vir ao de cima (as novas
sequências) aquilo que, estando já lá dentro, não pôde ser
totalmente explicitado.
É isto o que conta Coppola:
não houve tempo, nem distância, para contornar a pressão;
tinha nas mãos, há 22 anos, quatro horas e meia de filme e
a consciência de que (em 1979) o público não aguentaria muito
mais do que duas horas. Por outro lado, "Apocalypse Now" já
tinha suficientes "manobras de diversão" em relação ao género
"filme de guerra". Era preciso cortar, e como não era possível
fragmentar, foram tiradas sequências completas. Foi uma versão,
segundo ele, defensiva.
Hoje, diz, "as audiências
estão mais sofisticadas"- e, assume: 'Apocalypse Now' é hoje
um filme mais convencional do que em 1979". Por isso - inicialmente
a pensar no DVD, "o amigo do espectador, mas também o amigo
do realizador" - Francis foi buscar Walter Murch, o montador
de imagem e de som, e os dois regressaram ao filme. É curioso,
confessa Murch: ao olhar para as sequências que tinham sido
deixadas de fora, ele não sentiu que se tratava de um regresso
ao passado, "sentia que Francis estava naquele momento a filmar
'Apocalypse Now' e as imagens iam chegando, como se fossem
'rushes'". "Apocalypse Now" não vai ficar restrito ao DVD.
Antes disso, vai iniciar uma carreira comercial, a partir
deste momento em França e em Agosto nos EUA, precisamente
22 anos depois da estreia da versão original.
O que há de novo
Começa a ser "novo" a partir
de Kilgore/Robert Duvall e o seu "I love the smell of napalm
in the morning". Prolonga-se mais a personagem, e a sua grandeza
tragico-cómica. Willard/Sheen e os companheiros de barco fogem
com a prancha de surf, Kilgore ainda os sobrevoa. Há mais
pormenores da relação de Willard com os homens do seu barco,
desenvolvendo a cumplicidade entre eles.
Nada de muito essencial,
para já, mas vai solidificando um lastro "humano" no filme.
É a seguir que se introduz uma dimensão até agora ausente:
sexualidade. A "versão definitiva" é mais feminina. E ela
aparece em duas sequências extraordinárias.
Uma, é a continuação do
episódio das Playmates. Continuando a subir o rio, depois
do espectáculo, Willard e os outros encontram um acampamento
que está a ser "engolido" pela chuva. Onde já não ninguém
comanda. Num helicóptero estão duas "playmates". E um cadáver.
Willard troca gasolina por tempo de sexo para os seus rapazes.
Chove. Coppola diz que sempre esteve no espírito do filme
- "um filme sobre a hipocrisia moral, a mentira" - associar
os jovens soldados e as raparigas como vítimas do logro.
A morte, e o sexo, chegarão
de novo. Também através de uma mulher (interpretada por Aurore
Clément, que tinha ficado de fora do filme e que assim "ressuscita").
É uma sequência que se anuncia com as brumas, e depois vai
também desaparecer entre as brumas. É a sequência da "Plantação
Francesa". Parece o fantasma de um filme de Visconti. Mas
eles são todos fantasmas, os membros de uma família francesa
que há 70 anos vive na Indochina e que se recusa a abandonar
o território. Há um jantar, e a pergunta do proprietário:
"why are you here!". Eles sabem porquê: porque vivem lá há
70 anos. E os americanos? De um lado, o colonialismo francês,
do outro o colonialismo virtual americano. Grito: "You are
here for the biggest nothing on history". A dimensão anti-imperialista
mais explicitada, queria Coppola.
Depois do sexo, entre redes
e véus, Aurore Clément verbaliza a dualidade de Willard: de
um lado, um soldadinho perdido; do outro, capaz de matar.
Como se fosse um duplo de Kurtz/Marlon Brando, o ogre que
ele vai matar. Brumas de novo, e rumo a Kurtz. Que é o maior
risco desta versão, ao mostrar mais imagens - diurnas - de
Marlon Brando lendo em voz alta na revista Time as notícias
oficiais sobre o Vietname para mostrar ao aprendiz Willard
a extensão da mentira. Em nome desta explicitação, Coppola
concorda que arriscou destruir um "mistério", o de Kurtz como
Buda das trevas. Tornou-o mais humano, e mais contraditório.
Como Willard. O seu grito: "The horror", "the horror!" é,
neste versão, menos um grito metafísico, e mais um grito de
ajuda e de denúncia.
"Apocalypse Now", versão
definitiva, é hoje menos "a última trip", o último festim
alucinogénico da cultura pop, ou fragmentos abstractos de
um sonho perdido (isso continua lá); é hoje de uma grandeza
mais abrangente e complexa, que se desenvolve como se tivesse
crescido em 22 anos. Prolongando, afinal, tudo o que já estava
lá.
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