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  "Amo-te tanto que te quero comer" é levado à letra no filme da francesa Claire Denis
 
   

"Trouble every day", da realizadora francesa Claire Denis
Amar-te-ei até te devorar
Do nosso enviado Vasco Câmara, em Cannes
Domingo, 13 de Maio de 2001


Mais do que o incómodo por causa daquilo que se passava à superfície das imagens, foi a invasão de um medo interior - "Trouble Every Day", da francesa Claire Denis, anunciado como filme "choc" (por isso, sessão oficial à meia-noite, na secção Longas-metragens fora de competição).

Claire Denis não gosta do vermelho do sangue que se vê filmes. Porque é falso. O vermelho do sangue é quase preto. Basta olhar para as veias, diz ela. O filme, e a realizadora, têm curiosidade por aquilo que se passa no corpo, e ela diz que partilha essa curiosidade com David Cronenberg. Por isso, há muito sangue negro em "Trouble Every Day", e o medo é embalado pela música dos Tindersticks. É incuravelmente romântica, Denis, coisa que Cronenberg não é. Um dia Claire Denis teve um sonho: a mãe aconchegava-a na cama, dava-lhe beijos, e os beijos iam-se transformando, rasgando-lhe a pele que cheirava a leite e ela esperava pela dentada seguinte...

O pesadelo agora é um filme sobre a dor do corpo, o desejo como sofrimento. "Amo-te tanto que te quero comer", é levado à letra - e Claire Denis não tem paciência para revisões pós-modernas, logo, acépticas, do "gore". Quem sofre, aqui, como espécie solitária em fuga, é um americano (Vincent Gallo, de "Nénette et Boni") e uma francesa (Béatrice Dalle, de "J'ai pas sommeil"), que pagam com o corpo, enquanto canibais, as penas de pecados passados - das experiências com a libido humana, ficou-lhes uma fome irreprimível pela carne.

"Trouble Every Day", em Paris, como um filme de Jacques Tourneur, mas também com o romantismo gótico de Edgar Allan Poe, com o desfalecimento de "A Casa das Belas Adormecidas", de Yasunari Kawabata (inspiração explicitada pela realizadora, que é capaz de citar a frase do livro onde nasceu a ideia para o filme) e a tentativa muito singular de fazer um "poema do horror". O filme navega entre o torpor, que parece imaculado, mas depois, sem aviso, os actores são conduzidos até ao extremo, até ao frenesim. Como naquele momento em que o desejo parece ser à prova de evidências, não há violência, só duas bocas que se aproximam, os corpos a cederam, e depois... Tindersticks.

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