Colecção Privada
O quadro da semana
"A Rendilheira"

"Não é um quadro sobre uma menina que borda, mas um quadro que convida quem o olha, a ver outro universo", diz realizador João Mário Grilo

"A Rendilheira" propõe um jogo - e o espectador é o convidado. É uma espécie de "efeito de espelho, só completamente perceptível quando se vê o original, que é muito pequeno", explica o realizador João Mário Grilo. "Esse efeito tem a ver com o facto de este quadro mimar exactamente a atitude do espectador face a ele: o espectador assume, perante uma obra tão pequena, a mesma postura - um efeito mimético - do sujeito do quadro (a menina)."

Nesta "máquina especular, que é a base do mistério do próprio quadro", há então três olhares que se cruzam: o do pintor sobre o quadro, o olhar dela sobre o que borda e o olhar do espectador.

Este é o jogo que o quadro de Vermeer convoca e é por isso que Grilo diz que este "é o quadro mais cinematográfico da história da pintura". Se jogarmos "a sério", "olharmos para o quadro e imitarmos a menina, deixamos de ver - e descobrimos que há um outro universo que não vimos da primeira vez".

"Tudo se torna estranho, aquelas linhas, do lado da almofada, são uma população de insectos - há um gafanhoto a subir o livro e aquela meada vermelha tem uma geometria, parece um caranguejo, não é apenas um fio." E talvez a menina tenha "uma tarântula no cabelo, do lado esquerdo".

Este é também um quadro sobre o século XVII: "Sobre o medo, a inquietação, a esperança, o futuro, o tempo que vem depois - e tudo isso é o séc. XVII." E a inquietação prova por que, apesar de pacífico, é "um quadro altamente conturbado": há coisas inquietantes que estragam a aparência pacífica da menina, uma série de "monstros ameaçadores" que vêm da sombra. Do lado direito há uma calma. Mas o "drama começa do lado esquerdo, a ponto de devorar parte da figura". É quase "hitchcockiano".

"A Rendilheira" não é "um quadro sobre uma menina que borda, mas um quadro que convida quem o olha, a ver outro universo".

É no século XVII que há "um alargamento do visível", com a evolução da óptica, o surgimento do microscópico. "Um mundo que não existia antes, passa a existir". Uma "teoria do olhar"? O cineasta confirma-o: "Se 'A Gioconda' é uma teoria do olhar no Renascimento, esta obra é o contraponto, 200 anos depois, 'A Gioconda' do século XVII."

E reproduz também a grandeza da obra de Vermeer, porque tudo o que "o pintor nos oferece à primeira vista é pura ficção". Grilo refere "A Vista de Delfos" e o escritor Marcel Proust, fixado na mancha amarela - "os quadros de Vermeer têm um efeito de sucção", como o brinco de "A Rapariga com o Brinco de Pérola": "Há sempre qualquer coisa que diz que aquilo não é o que parece ser. Convida a aproximarmo-nos, a ver melhor. E aí somos aspirados para dentro do quadro."

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