Colecção Privada
O quadro da semana - "O Três de Maio de 1808"

Obra que antevê "o lado dual que existiu sempre na pintura de Goya, entre um grande humanismo e uma bestialidade absoluta", diz Miguel von Hafe Pérez.

A três de Maio de 1808 cerca de 400 espanhóis, presos no dia anterior, foram executados pelos pelotões de fuzilamento das tropas francesas. Este quadro de Francisco Goya (1746-1828), pintado em 1814, "representa o que a arte pode ter de mais profundo de universalidade da representação de factos", explica Miguel von Hafe Pérez, responsável pelo "site" "Anamnese" (da Fundação Ilídio Pinho), sobre arte contemporânea em Portugal, também curador do Centro de Arte Moderna de Santa Monica, em Barcelona.

Goya foi acusado de ser "um afrancesado simpatizante dos ideais mais liberais da Revolução Francesa, mas, quando vê o seu país invadido, submerge num dilema social e ideológico - a dilaceração provocada por uma força ocupante cria uma reacção a essa possível identificação ideológica do pintor", explica.

Se em "Dois de Maio de 1808" há um claro confronto, "violentíssimo, entre os populares e as forças francesas", no "Três de Maio" há a "concretização do terror, da violência desiquilibrada - o fuzilamento". Esta noite prova "a morte da racionalidade liberal, o esvair de uma ideologia pela qual Goya poderia ter-se sentido atraído". Aqui, Goya "não humaniza nem vítimas, nem carrascos - há uma massa anónima de personagens que fuzila os populares; e, no olhar da vítima, há uma resignação e terror absolutos, que faz antever o lado dual que existiu sempre na pintura de Goya, entre um grande humanismo e uma bestialidade absoluta."

Diz Baudelaire sobre o pintor espanhol: "O grande mérito de Goya consiste em criar um monstruoso credível. Ninguém ousou tanto como ele num sentido de um absurdo possível. Todas as suas contorções, as suas faces bestiais, os seus esgares diabólicos são penetrados de humanidade."

Nos retratos de família real "encontram-se já esses 'esgares diabólicos' de que fala Baudelaire". Nesta fase, contudo, há uma espécie de "realismo romântico, a necessidade de retratar, de uma forma mais fiel, contrastes exacerbados", diz Hafe Pérez.

Nas "Pinturas Negras" há "um isolamento", em que o pintor "dá azo a uma libertação de um mundo de sonho que ele também antevia, quando afirmava que 'o sonho da razão produz monstros', numa das legendas das famosas gravuras dos 'Caprichos'". Goya reflecte sobre um acontecimento histórico e abandona, assim, "o lado terrífico das 'pinturas negras'". Este quadro é, por isso, "um ponto de partida sobre o papel da arte na relação com o real".

Apesar dessa "urgência de real", não há qualquer relato de que Goya tivesse assistido a estas cenas. "Olhando para o quadro, contudo, parece que o pintor está imergido na cena." Quase como uma fotografia.

Mas estamos num contexto pré-fotográfico: "É extraordinário o modo como a pintura retira a dimensão de uma credibilidade ou verosimilhança que a fotografia obriga a respeitar, e atira-nos para um outro universo de excepção, que é a crítica do real."

O real é criticado nesta obra "de uma forma paradigmática difícil de ultrapassar, que radica não só no acontecimento em si e na forma como é retratado, mas também na própria encruzilhada ideológica de Goya".

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