Colecção Privada
O quadro da semana - "Acque Pericolose"

Ficou indeciso: que Mona Lisa escolher de entre as várias que Jean-Michel Basquiat pintou? Numa manhã, esqueceu Mona Lisa e ficou-se por "Acque Pericolose (Oásis Venenoso)", de 1981. "Porque esta obra traduz toda a carga de solidão das obras de Basquiat", diz o jovem cantor-poeta angolano, Kalaf Ângelo.

Kalaf recorda uma frase que ouviu quando chegou a Lisboa: "O verdadeiro rebelde anda sempre sozinho." Podia ser Basquiat. "Há pessoas que estão um pouco mais à frente do seu tempo e no Basquiat isso traduz-se numa certa rebeldia. O facto de expressar coisas que não estão de acordo com a maioria faz com que ele seja obrigado a isolar-se e afastar-se de tudo", diz Kalaf.

Quando viu o filme que Julian Schnabel fez sobre o pintor nova-iorquino, "sabia muito pouco" sobre Basquiat. O filme "era demasiado romântico e depois de ver os quadros senti que havia qualquer coisa de errado". Como? "Basquiat era o oposto daquilo", diz Kalaf. "As pessoas transformaram-no no ícone do artista romântico, que sofre, com um passado tortuoso." Isso acontece com Basquiat, "mas essa não era a sua motivação". Explica: "As pessoas românticas têm tendência para chamar o mundo para si, abraçá-lo. Basquiat não, era de si que partia todo o sentimento, toda a solidão. Ele era mordaz, sarcástico."

Mas Kalaf continua a não resistir à Mona Lisa. "Há uma série de estereótipos criados neste contexto urbano, a partir do 'graffiti' (que é a expressão absoluta do artista urbano), que é usar uma imagem clássica e transformá-la radicalmente." O que Basquiat faz tem um "tom de heresia" - "Era como se eu, músico, usasse Schumann e o transformasse segundo a música de hoje".

As várias "Monas Lisas" de Basquiat mostram, por isso, "a coragem que ele tinha de pegar nos clássicos e transformá-los". "A arte nunca foi absoluta, a sua tendência é abrir e não fechar ou concluir. Mas o Da Vinci conclui. A Mona Lisa é a perfeição total da arte, a beleza." Se Duchamp lhe põe bigodes e a torna cómica, "Basquiat torna-a grotesca".

Há outros aspectos que Kalaf recorda em Basquiat: o facto de pintar muitas banalidades ("intriga-me bastante o quadro 'Arroz con Pollo'") ou usar palavras escritas ("porque trabalha a poesia e porque esses quadros remontam ao tempo em que ele era SAMO [pseudónimo de Basquiat quando pintava 'graffiti']), ou ainda pela alusão a artistas "revolucionários" do jazz, Charlie Parker ou Dizzy Gillespie, "também é uma banalidade, mas ele tenta tirar daí uma certa pureza".

Mas são os "graffiti" que marcam Basquiat como o artista de rua que chegou às galerias. "Os artistas de 'graffiti' são rebeldes por natureza, mas há uma certa infantilidade. Falta ainda uma preocupação em eternizar aquilo. Basquiat decidiu eternizar a sua obra e passou da parede ao papel."

Tudo se passa na "época de transição" que são os anos 80: "O hip-hop também começou nas ruas e começou a ganhar peso nesta altura", diz Kalaf. "O Basquiat é, de certa forma, um dos grandes percursores da cultura urbana, por isso SAMO tem essa importância." Só hoje, diz, estamos a conseguir olhar para os anos 80 "com frieza, para os compreender". "Os artistas estavam à procura de uma nova linguagem, na música, na arte, no cinema. Basquiat estava lá. E o facto de ele estar ínfimos segundos à frente dos outros faz toda a diferença. Só hoje é que a história está a colocar as coisas no devido lugar."


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