Colecção Privada
O quadro da semana - "As Duas Fridas
"
Era ainda
um miúdo. Frequentava o Círculo de Artes Plásticas
de Coimbra. "O Ângelo de Sousa [pintor] dava lá aulas
e costumava levar 'slides' ou revistas para nos mostrar. Uma era a "Studio
international", de cerca de 1970." Foi assim que o pintor Albuquerque
Mendes, 51 anos, "conheceu" a mexicana Frida Kahlo: "Era
este quadro, 'As Duas Fridas", vi-o a preto e branco num artigo sobre
arte mexicana. E desde então é uma das imagens que tenho
da arte do século XX", diz.
Marcou-o sempre: "Uma das coisas que faço obsessivamente é
pintar o meu auto-retrato. Se fizesse psicanálise, talvez me mostrasse
que este quadro, para um miúdo de 16 anos, de calções,
teve imensa importância", graceja. Porquê auto-retratos?
"É a minha imagem, no sentido simbólico, multiplicando-me
noutras pessoas, noutros sítios. Às vezes, como se houvesse
um retrato meu feito por outros artistas", explica.
Também Frida era assim. "Vai-se mascarando ao longo dos seus
auto-retratos, para poder estar noutros sítios e noutras pessoas.
Aqui não se retrata como se se visse no espelho, mas como uma irmã
gémea, um oposto." Este quadro é uma "espécie
de projecção, de dupla visão: deus-diabo, preto-branco,
noite-dia".
O fascínio por Kahlo levou-o ao México, onde esteve este
ano. Queria ver "in loco" o sítio onde Frida pintou,
a Casa Azul, de Coyoacán, uma aldeia dos arredores da Cidade do
México, hoje "engolida" pela capital. "Sempre quis
ver como aquilo era, tentar entender como aquilo passava para a Frida,
como ela absorvia tudo", explica.
Albuquerque Mendes não viu o filme "Frida" (com Salma
Hayek), mas acredita que mudou muito a forma como as pessoas olhavam para
a pintora. "Nos anos 70, era mostrada como no circo se mostra a mulher
barbuda." Tudo mudou entretanto. "Também tem a ver com
a forma como o Ocidente passou a olhar para a América do Sul e
descobriu uma linguagem universal, mas também muito particular",
explica.
Hoje, Hollywood transformou imagem de Frida e "para os que não
a conheciam, ela tornou-se uma personagem, no sentido literal." Porquê?
Frida é uma mulher "de máscaras, de teatro, que encena
as suas próprias coisas - a roupa, os amores, a casa. Acredito
que andava horas na Casa Azul a pensar como poderia aparecer, chocar,
provocar, ora mais masculina, de fato, de bigode e sobrancelhas escuras,
ora mais feminina, vestida à mexicana. Ela vai criando uma espécie
de teatro que se sente muito na casa, que parece um cenário."
Há, por isso, em todos os auto-retratos de Kahlo, a "procura
de uma sexologia, cartografia sexual, como se fossem uma espécie
de mapa". Todo o trabalho de Frida é "um impulso"
e ela impõe-nos "o seu estado de apelação sexual".
A sua pintura é "muito explícita", os quadros
"são sempre impulsos amorosos violentos" - "ela
faz questão de ser provocadora".
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